RS terá 1º quilombo urbano com propriedade regularizada

Recebimento de título ocorrerá no próximo mês em Canoas para comunidade que ocupou a terra no século passado

A partir do próximo mês, uma insegurança de décadas chega ao fim para algumas famílias de Canoas, no Rio Grande do Sul. O recebimento do título de propriedade da comunidade Chácara das Rosas encerra o receio de perder as terras ocupadas pelos ancestrais.

Não se trata de uma história comum: será o primeiro quilombo urbano do Brasil com título de propriedade regularizado. Uma luta que começou oficialmente em 2003, com a assinatura do decreto 4.887, que altera vários dos trâmites para o reconhecimento e a demarcação das comunidades quilombolas. Foi naquele ano que Isabel Cristina Genelice reuniu os tios mais velhos e decidiu dar início ao processo de reconhecimento de Chácara das Rosas.

As 82 pessoas que atualmente habitam a propriedade de 3.619 metros quadrados escolheram Isabel para representa-los. Entre 2005 e 2006, ao mesmo tempo em que a Fundação Palmares emitia o certificado de autoidentificação do quilombo, foi iniciado o processo no Incra do Rio Grande do Sul. 

José Rui Tagliapietra, superintendente substituto do órgão no estado e coordenador de projetos especiais de regularização de territórios quilombolas, considera que “a política pública mais demandada pelas comunidades é a regularização de seus territórios, o que significa estabilidade. Com isso, a comunidade não estará envolvida em ações de despejo e de reintegração de posse”.

É exatamente a disputa por terras que atrasou o reconhecimento do quilombo Família Silva, em Porto Alegre. Maurício Reis, diretor do Departamento de Proteção do Patrimônio Afro-brasileiro da Fundação Palmares, destaca que “a cidade cresceu em torno dessas comunidades, que estão lá há cem, duzentos, trezentos anos. Agora, o que acontece é que elas estão cercadas por grandes prédios, o terreno está muito valorizado e a principal questão é a especulação imobiliária”.

No caso de Chácara das Rosas, a questão especulativa não chegou a representar um entrave. O pior para essa comunidade foi o preconceito. Maria Aparecida Mendes de Lima, coordenadora das políticas de igualdade racial da prefeitura de Canoas, afirma que o quilombo foi chamado abertamente por alguns vizinhos durante muito tempo de “Planeta dos Macacos”. “Havia um preconceito que chegava na escola e, com isso, muitos deles não têm nem a primeira série. Por tudo isso, eles têm características bem ‘quilombolas’ mesmo, desconfiados. Agora, para eles, é um momento em que está acontecendo”.

Isabel Cristina Genelice confirma que a situação está mudando graças à parceria e à complementaridade entre as diversas esferas de poder. Chácara das Rosas começa a ter acesso a esgoto, eletricidade e a recursos de programas sociais de habitação e de complemento de renda.

Obviamente, nem sempre foi assim. À parte o preconceito externo, muitas pessoas deixaram o local ao longo das décadas em busca de sobrevivência. Ocupado no início do século passado por Rosalina, filha de escravos, e o marido Crispim – avós de Isabel-, o quilombo chegou a ser muito maior. Na época, Canoas era apenas um distrito de Gravataí e o uso da área era rural. Mas o tempo foi passando, a cidade cresceu ao redor e a situação ficou mais complicada.

“A partir do falecimento do meu avô, minha avó teve muitos obstáculos. Ela foi uma guerreira por preservar esse espaço, resistir. Teve muitas pressões por interesse. Davam galinha, gado, em troca de um pedaço de chão, então a área foi se afunilando de acordo com a necessidade das famílias”, afirma Isabel.

Manter as características é algo difícil para os quilombos em meio urbano, admite Maurício Reis. O diretor da Fundação Palmares pensa que é inegável a influência exercida pelas cidades que crescem ao redor das comunidades. Na maioria dos casos, os quilombos acabaram engolidos pela expansão de prédios e casas. Por isso, ele aponta que a titulação de terras é fundamental “pela sobrevivência, pelo resgate, pela questão de manter a organização econômica, política, social, religiosa e cultural que têm os remanescentes”.

Para que a comunidade não continue exposta às pressões imobiliárias, “o título vai ser entregue para a associação comunitária com cláusulas de impenhorabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade, significando que essas terras vão permanecer para sempre em nome da comunidade”, aponta Tagliapietra, do Incra gaúcho.
Isabel aponta que os parentes e os vizinhos “estão vendo o tamanho da importância que é ter o título na mão. Mas, ao mesmo tempo, o que é de característica quilombola, temos receio de perder o que é nosso. Enquanto a gente não estiver com o título na mão, fica com receio”.