Mato Grosso

Pouca comida, violência e abuso sexual: irmãos têm reparação após 22 anos de trabalho análogo à escravidão

Segundo o Ministério Público do Trabalho, “quando atravessavam a porteira, os empregados se viam presos a um rincão reminiscente de um passado incivilizado, semifeudal”

Cras/Pontal do Araguaia
Cras/Pontal do Araguaia
Acomodação dos trabalhadores na Fazenda Canoeiro, em Pontal do Araguaia, a 510 quilômetros de Cuiabá

São Paulo – Acordo homologado na Justiça de Trabalho após anos de tramitação, em Mato Grosso, fixou reparação financeira para dois irmãos submetidos à trabalho análogo à escravidão durante mais de duas décadas na Fazenda Canoeiro, em Pontal do Araguaia, a 510 quilômetros de Cuiabá. O Ministério Público do Trabalho (MPT) havia ajuizado ação civil pública a partir de denúncia do Centro de Referência da Assistência Social (Cras) daquele município.

De acordo com o Ministério Público do Trabalho, as condições de vida e de trabalho no local “eram de tal modo precárias” que, depois da primeira visita, os profissionais do Cras voltaram à fazenda com apoio da PM. Isso para que os envolvidos fossem levados para prestar depoimento.

Violência fazia parte da rotina

Marinalva Santos e Maurozã Santos eram encarregados de serviços gerais, como manutenção da horta, da represa e dos animais da propriedade. À época da denúncia, tinham 43 e 49 anos, respectivamente. “A violência física fazia parte da rotina de ambos os irmãos. Marinalva relata ter sofrido agressões contínuas, mencionando o uso de pedaços de pau e facão. Ela também teria sido vítima de abuso sexual. Em resposta à equipe do Cras, afirmou que ‘homens já fizeram coisas que ela não queria'”, relata o MPT.

“Há, ainda, relato de ao menos um episódio grave de violência contra Maurozã, que, motivado por fome extrema, ‘furtou’ uma galinha. Uma vez descoberto, foi levado pelo filho da ré para um brejo, onde apanhou pelo ocorrido. Ele acrescentou que, na ocasião, o agressor possuía uma arma de fogo em punho”, diz o Ministério Público. Segundo o Cras, o tratamento que eles recebiam era brutal. Quando foram resgatados, disseram que naquele dia haviam se alimentado de arroz com soro de leite.

Relação “familiar”

Os réus negaram maus-tratos e disseram que a relação com as vítimas era familiar. O procurador do Trabalho Állysson Feitosa Torquato Scorsafava contestou, lembrando que a relação era subordinada e não voluntária. Nunca houve formalização, e os irmãos eram proibidos de sair da fazenda. “Ademais, o caráter violento, exploratório e desumano do tratamento dispensado pelas rés a Marinalva e Maurozã é incompatível com o cariz familiar que atribuem à sua relação com eles. Aproveitavam-se de sua vulnerabilidade para vilipendiar-lhes a dignidade”, escreveu o procurador.

Assim, em maio de 2000, Marinalva passou a receber Bolsa Família, mas o cartão e a senha ficavam com os “patrões”. Assim, lembra o MPT, o valor era administrado pelo grupo familiar e sonegado de Marinalva. Exploravam o trabalho e até o nome, afirma o procurador.

Péssimas condições de higiene

“As normas trabalhistas eram sistemática e generalizadamente desrespeitadas nas relações de trabalho na Fazenda Canoeiro. Os irmãos moravam em uma casa em péssimas condições de higiene, não recebiam roupas de corpo ou de cama, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), folga ou salário. Marinalva relata que já havia tentado sair da fazenda, mas retornou para a propriedade por não ter condições de se manter, complementando que as refeições realizadas eram raras e consistiam basicamente em ‘pão e bolo'”, informa ainda o MPT.

Maurozã disse ao Ministério Público que trabalhava todos os dias da semana, inclusive aos domingos. “Como não havia banheiro no local em que ficavam alojados e não recebiam qualquer produto de higiene, era necessário ir ‘até o mato’ para realizar as necessidades fisiológicas. O local não era limpo com frequência e as vítimas tomavam banho na represa da propriedade.” Depois do resgate, levaram algum tempo para se familiarizar com o uso de objetivos de higiene pessoal.

Descumprimento generalizado de direitos

Havia uma terceira vítima: Rafael dos Santos, filho de Marinalva, resgatado posteriormente. “Da mesma forma que a mãe e o tio, laborava na Fazenda Canoeiro recebendo ordens da ré, a quem chamava de ‘vó’. Em suas palavras, ‘desde sempre se lembrava de ter trabalhado naquela fazenda, inclusive aos domingos, quando levava dona Odete para a feira em Pontal, dirigindo a caminhonete, mesmo sem CNH, e nunca havia tirado férias’.”

“O descumprimento generalizado e continuado de direitos fundamentais dos trabalhadores previstos na Constituição e o desprezo absoluto a quaisquer normas de saúde e segurança do trabalho e, sobretudo, a indiferença a todas as regras trabalhistas de higiene e conforto, submetiam as vítimas a situação degradante e desumana de vida e labor”, afirmou o MPT na ação. “Não receber qualquer produto de higiene, fazer as necessidades fisiológicas no mato, tomar banho em lago ou represa, dormir em catres em casas imundas, passar fome a ponto de mendigar por comida com os vizinhos, sofrer sucessivos abusos de poder pela sonegação de salário e mediante violência física e psicológica, possivelmente sexual, todos esses comportamentos negam aos trabalhadores a dignidade inerente à sua condição humana.”

Registro em carteira

Agora, pelo acordo homologado no mês passado, na Vara do Trabalho de Barra do Garças, Odete Maria da Silva e seus filhos, Lucimar Justino da Silva e Vera Lúcia Justina Ataíde, deverão anotar a carteira de trabalho das vítimas. No caso de Marinalva e Maurozã, relativo ao período de 8 de novembro de 1998 a 3 de março de 2020. No de Rafael, de 21 de dezembro de 2010 a 11 de fevereiro de 2020. A remuneração será de um salário mínimo. Também será liberado seguro-desemprego. Os réus aceitaram vender uma parte das terras, para pagar a indenização. Além disso, a título de danos morais coletivos, durante 12 meses serão destinadas duas cestas básicas/mês para uma escola municipal.

Os irmãos retirados da fazenda foram mantidos até 2021 em uma instalação fornecida pela prefeitura, sob os cuidados da assistência social. Enquanto isso, com ajuda da assistente social Kelly Cristina Pereira, o procurador do Trabalho conseguiu localizar um terceiro irmão, que morava em Goiás. Ele foi a Pontal do Araguaia e levou todos consigo, “acolhendo-os e dando a eles um verdadeiro lar”.

O MPT faz menção às raízes escravocratas o país. “Quando atravessavam a porteira, os empregados se viam presos a um rincão reminiscente de um passado incivilizado, semifeudal, no qual o direito do trabalho não existia, em que a lei eram a palavra e a vontade do patrão; e onde o trabalhador, ao invés de sujeito de direitos, era só objeto: de boa-vontade, ou mais comumente, de abusos, invariavelmente à mercê dos caprichos do dono da terra. Se o direito do trabalho tem uma missão primordial, é a de enterrar esse entulho, confinando-o a um canto da história que só é revisitado para não ser esquecido e jamais repetido.”

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