Conflito

PEC sobre demarcação de terras indígenas pode não ser mais aprovada este ano

Adiamento faz parte de articulações de ruralistas e comunidades tradicionais; matéria é vista como retrocesso para indígenas e medida de ‘segurança jurídica’ pelo agronegócio

José Cruz/Agência Brasil

Índios de várias etnias realizaram manifestação no STF para sensibilizar os ministros sobre a demarcação de terras

Brasília – A votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que estabelece novas regras para a demarcação de terras indígenas, corre o risco de não vir mais a ser votada este ano pelo Congresso. Numa disputa de articulações entre os defensores dos movimentos indigenistas e representantes do agronegócio, ficou acertado entre os parlamentares integrantes da comissão especial encarregada de apreciar a matéria o adiamento da votação que, inicialmente, fica para a próxima terça-feira (16) – mas pode ser postergada ainda mais.

Os dois lados afirmaram, em conversas reservadas, que acham temerário votar a proposta agora, sem uma discussão mais ampla. A bancada ruralista, porque pretende evitar mudanças ao substitutivo apresentado pelo relator, deputado Osmar Serraglio (PMDB-RR) – cuja expectativa é de sofrer fortes reações quanto ao seu teor. Os defensores das entidades que defendem o pleito dos indígenas, por sua vez, porque acham que uma maior discussão vai ajudar na apresentação de emendas que possam reverter o efeito do substitutivo e este período – de votação de tantos projetos importantes – pode não ser o ideal.

A versão oficial divulgada pela Câmara dos Deputados, no entanto, é de que o adiamento da reunião, antes previsto para as 10h, aconteceu diante da previsão de votação do projeto para alterar a meta de superávit do governo, previsto para acontecer às 12h, uma vez que duas horas seriam pouco tempo hábil para a discussão de um tema tão polêmico. Acontece que, desde a noite de ontem, o presidente do Congresso, senador Renan Calheiros (PMDB-AL), mudou o horário da sessão do superávit para o final do dia: 17h, pondo por terra esta desculpa.

Tribos pataxós

Embora o numero de índios que vieram a Brasília tenha sido menor que na semana anterior, quando a apresentação do relatório foi adiada pela primeira vez, a mudança de agenda atrapalhou a programação de aproximadamente 30 representantes da tribo Pataxó, que estão na capital do país desde ontem (8). Na última semana, cerca de 70 deles, pertencentes às  tribos Apinajé, Krahô, Kanela do Tocantins, Xerente, Krahô Kanela e Karajá de Xambioá circularam e fizeram manifestações no Congresso e na Esplanada dos Ministérios. Desta vez, com a programação alterada, eles aproveitaram a manhã para visitar gabinetes de deputados membros da comissão para conversar sobre o projeto e a importância de serem observadas suas reivindicações.

Na prática, a grande discussão em torno da PEC é o fato de o texto retirar do Executivo federal o poder de fazer demarcação de terras indígenas por meio de decreto, o que acontece mediante um histórico das áreas e elaboração de pareceres técnicos por parte da Fundação Nacional do Índio (Funai). Conforme estabelece a PEC, a demarcação passará a ser decidida mediante aprovação de projeto de lei pelo Congresso Nacional, onde atualmente é grande e forte o poder da bancada ruralista. O Executivo é contra o teor da matéria, da forma como propõe o relator.

A explicação apresentada pelo deputado Osmar Serraglio é de que a mudança nas regras dará maior segurança jurídica às regulamentações de tais terras, mas esse argumento é questionado por várias lideranças partidárias. “Se a proposta for aprovada, as demarcações ficarão inviabilizadas e o agronegócio avançará sobre as terras indígenas. Os povos tradicionais não terão mais direito às suas terras. Ocorrerá um recrudescimento dos conflitos e da violência no campo. Do ponto de vista ambiental, os danos serão enormes, com mais florestas devastadas, mais veneno lançado na natureza, menos rios e menos biodiversidade”, afirmou a bancada do Partido Verde, por meio de nota criticando o substitutivo de Serraglio.

Terras tradicionais

Outro ponto polêmico do texto diz respeito à definição de terras tradicionais indígenas. Atualmente, conforme estabelece a Constituição Federal, são consideradas assim “todas as terras habitadas por povos indígenas em caráter permanente, utilizadas para suas atividades produtivas e imprescindíveis à preservação de recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Mas no seu relatório, o deputado já adiantou que serão consideradas terras indígenas apenas as que atendiam a esses critérios no período de 5 de outubro de 1988.

Na avaliação de técnicos da área e antropólogos, trata-se de uma brecha para impedir que terras indígenas há mais de 200 anos e que foram ocupadas três ou quatro anos atrás por fazendeiros e empresários não possam mais ter o direito de serem demarcadas. Além disso, o substitutivo permite aos índios poder explorar as terras direta ou indiretamente, mas mediante uma série de exigências tidas como complicadas para eles, como ocupações consideradas de relevante interesse público da União, instalação e intervenção de forças militares e policiais, instalação de redes de comunicação, rodovias, ferrovias e hidrovias e edificações destinadas à prestação de serviços públicos.

Fica, ainda, caso o texto seja aprovado da forma como se encontra, autorizado o ingresso, trânsito e permanência dos chamados “não índios” nas áreas indígenas, inclusive pesquisadores e religiosos. E, as comunidades indígenas tidas como em estágio avançado de interação com os não índios poderão se autodeclarar “aptas a praticar atividades florestais e agropecuárias e a celebrar contratos, inclusive de arrendamento e parceria”.

Mobilização nacional

A Mobilização Nacional Indígena, movimento que reúne entidades como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) – vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Instituto Sócio Ambiental (ISA), também trabalha junto ao legislativo na tentativa de impedir a votação de outra matéria: o projeto de lei do senador Romero Jucá (PMDB-RN), que pretende regulamentar o Art. 231 da Constituição Federal.

Conforme o texto de Jucá, algumas propriedades rurais passariam a ser definidas como “área de relevante interesse público da União” e poderiam ser excluídas da delimitação das terras indígenas caso seus títulos de ocupação sejam “considerados válidos”. A proposta tramita há 14 anos no Congresso, mas consiste uma segunda briga que tais entidades pretendem travar após a apreciação da PEC.