Para ativista, Comissão da Verdade do governo é ‘cortina de fumaça’

Diretora do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil) critica ritmo de cumprimento da sentença do Brasil na OEA pelos crimes cometidos durante a ditadura

A diretora do Cejil, Beatriz Affonso, defende “papel pedagógico” da sentença da Corte Interamericana contra o Brasil (Foto: Janine Moraes/Agência Câmara)

São Paulo – A diretora do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil) para o Brasil, Beatriz Affonso, observa com ceticismo as movimentações do governo federal pela criação da Comissão de Verdade, que terá o papel de apurar os crimes cometidos durante os 21 anos de regime militar.

“É uma ‘cortina de fumaça’ política para não fazer enfrentamento interno com os setores que se opõem ao tema”, critica. Ela não acredita na possibilidade de que a mudança de composição de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) venha a dar nova interpretação à Lei de Anistia,. Em 2009, o STF decidiu que a matéria resultou de um amplo acordo da sociedade e que, por isso, os torturadores do período autoritário não poderiam ser punidos.

A diretora do Cejil acredita que o fundamental é o cumprimento da sentença que o Brasil sofreu em dezembro de 2010 na Corte Interamericana de Direitos Humanos. A entidade, que integra a Organização dos Estados Americanos (OEA), avaliou que o Estado brasileiro é culpado por não haver levado adiante a investigação e a punição do episódio conhecido como Guerrilha do Araguaia. Entre outras coisas, a Corte anotou que o país não deveria usar a Lei de Anistia como pretexto para deixar de punir quem violou os direitos humanos. 

Mas, para movimentos e cidadãos que acompanham o assunto, a execução das exigências caminha a passos lentos. Recentemente, entidades como o Cejil, o Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e a Associação Juízes para a Democracia deram início a uma articulação que visa a pressionar o governo federal, o Legislativo e o Judiciário a darem cumprimento integral da sentença. “Dar visibilidade faz parte de um processo em si mesmo, de envolver a sociedade no cumprimento da sentença”, explica Beatriz.

Confira a seguir trechos da entrevista concedida à Rede Brasil Atual.

RBA – Qual importância de uma campanha para pressionar pelo cumprimento da sentença da Corte Interamericana?

Temos dois objetivos. O papel principal da sentença é uma mudança cultural e social a respeito dos períodos de exceção. Infelizmente, o Brasil está atrás das outras nações. A ditadura fez o trabalho de deixar todo mundo sem muita informação durante muito tempo. Dar visibilidade faz parte de um processo em si mesmo, de envolver a sociedade no cumprimento da sentença.

Por outro lado, no que diz respeito ao Estado, a gente sabe que a pressão política interna é o que vai fazer com que as autoridades se sintam mais constrangidas. Para os que ocupam cargos permanentes, não eletivos, é preciso fazer uma cobrança sobre o papel que desempenham. Neste caso, o Ministério Público, que precisa investigar os crimes. Hoje a gente tem um grupo interessante no Ministério Público Federal que está mais disposto a investigar, mas isso é fruto de uma atuação que faz transparecer ao agente público que ele tem um papel político para a sociedade.

As medidas adotadas neste ano de condenação têm tido bom ritmo?

São muito frágeis. Tem um discurso presente em todas as autoridades de que o Estado vai cumprir. A ministra de Direitos Humanos diz que vai cumprir, o Itamaraty diz que vai cumprir, o Ministério da Defesa diz que vai cumprir. Cada um olha da sua perspectiva. Se recorta a sentença como se ela não fosse uma coisa única, como se fosse possível cumprir só alguns pedaços.

Alguns prazos efetivos já aconteceram, e não de forma feliz. Por exemplo, a publicação da sentença em um jornal de grande circulação foi feita um dia depois do prazo e sem que os familiares fossem informados com antecedência. Ninguém, sem exceção, nos avisou. Um dos eixos da sentença é alcançar a reparação individual das famílias, que pela primeira vez veriam seus familiares como vítimas, e não como réus, em uma publicação oficial do Estado. Isso foi muito chato. Começamos muito mal. É o sinal de que o Estado não dá o braço a torcer no sentido de cumprir a sentença do jeito que a Corte determinou.

Posteriormente a isso, temos a publicação no Diário Oficial. E a publicação em uma página eletrônica do Estado. Escolheu-se a Secretaria de Direitos Humanos. No entanto, a ministra Maria do Rosário se animou a fazer um preâmbulo, o que é bastante grave. Ela resolveu falar sobre Comissão da Verdade, o que é tratado de forma marginal na sentença, e não é nem uma exigência. Ela faz toda uma introdução bem tendenciosa. Fala sobre o que é importante para ela, e retira o que é importante na sentença para os familiares e, sobretudo, para a Corte. 

A Comissão da Verdade pode ser utilizada como justificativa para deixar a sentença de lado?

A gente acha que é uma cortina de fumaça, mas não para não cumprir, porque isso a Corte não vai aceitar, não está na sentença. É uma cortina de fumaça política para não fazer enfrentamento interno com os setores que se opõem ao tema. Acham que daqui a dois anos o STF vai estar diferente. Eu, honestamente, não tenho essa esperança. A nomeação de novos ministros do STF não foi em nada positiva para a questão dos direitos humanos. E um ministro só não faz verão. 

Não acho que de fato a Comissão da Verdade vá trazer grande diferença. Achar que a população vai estar tão favorável, vai pedir Justiça, isso não vai acontecer. É um contexto muito diferente dos outros países. Passou muito tempo. A gente tem de lidar com este contexto. Precisa de um fortalecimento de uma posição política séria.

O não cumprimento da sentença acarreta em que efeitos para o Estado brasileiro?

A Corte Interamericana, no dia 14 de dezembro, quando faz um ano, vai dar um mês de prazo para o Estado brasileiro apresentar seu relatório. Depois vai passar para nós, os peticionários, para que possamos comentar. Depois disso, se a gente tiver mesmo uma situação de não existir qualquer tipo de dissonância, é certo que a Corte vai chamar para uma audiência para que se comprove esta dificuldade do Estado brasileiro em cumprir. É uma questão política. Todos os anos em que houver pendências, o Estado vai aparecer em débito perante a OEA e a ONU. E teremos grande prazer em mostrar que, apesar do discurso muito lindo na questão dos direitos humanos, o Estado brasileiro tem uma prática diferente.