Triste herança

Ossadas de Perus voltam a mudar de lugar na fase final de análise. ‘Sociedade quer resposta’, diz perito

Coordenador científico ressalta importância de garantir resposta aos familiares de mortos e desaparecidos políticos. Objetivo é construir um memorial

Reprodução
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Ossadas encontradas em 1990 em Perus sairão deste local em breve. Mas a preocupação é garantir a construção de um memorial nos próximos anos

São Paulo – O Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) está de mudança, após a venda do imóvel em que a instituição está instalada, em uma tranquila rua da Vila Mariana, na zona sul paulistana. É lá que ficam, há quase oito anos, as ossadas descobertas em 1990 em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em Perus, zona noroeste da capital. Resquício dramático da ditadura, esse material sofreu com descuido na conservação e passou por vários locais durante décadas, até 2014, ano de criação do centro. A situação melhorou e os trabalhos tiveram sequência, embora volta e meia sofressem algum abalo, financeiro ou político. O atual governo, por exemplo, quis levar as ossadas para Brasília. Agora, o Caaf terá que mudar devido à venda do imóvel, e a construtora tem pressa.

A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), responsável pelo centro, já conseguiu outro imóvel para acomodar o material. Fica em um bairro próximo, a Vila Clementino, também na zona sul. As ossadas deverão permanecer ali durante até cinco anos, prazo previsto para conclusão do projeto de um memorial. União e prefeitura deverão custear reforma e adaptação do local. Ainda não está definida a data de mudança. Atualmente, segundo o coordenador do Caaf, professor Edson Teles, aproximadamente 20 pessoas trabalham na instituição, entre servidores e bolsistas, envolvidos em outros projetos além do de Perus.

Preocupação dos familiares

O Caaf teve origem a partir de parceria entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura de São Paulo e Unifesp. Foi quando se articulou o Grupo de Trabalho Perus (GTP). Surgiu a partir de demandas de familiares de mortos e desaparecidos políticos, inconformados com o descuido no trato com as ossadas. Posteriormente, o Caaf desenvolveu outros projetos, como o que estudou os chamados “crimes de maio”, em 2006, sobre violência do Estado – no caso, da PM paulista.

A equipe técnica do GTP em 2018: trabalho multidisciplinar (Foto Arquivo GTP)

Mas a primeira tarefa do grupo foi a análise das ossadas de Perus, que foi tema de biografia e está em fase final. Como havia material misturado em um quarto das caixas, os peritos estimam que havia restos de aproximadamente 1.300 pessoas. A atual fase dos trabalhos, a partir de 2014, identificou os restos dos militantes políticos Aluizio Palhano Ferreira e Dimas Casemiro.

Novas análises

O perito Samuel Ferreira, coordenador científico do GTP, lembra que todas as 1.049 caixas vindas de Perus “tiveram seus conteúdos analisados do ponto de vista antropológico”. E em torno de 26% dessas caixas, confirma, havia mistura de ossos.

“Até o momento, houve 750 casos individuais submetidos a análises genéticas e estamos trabalhando na coleta de amostras ósseas de mais 150 casos individuais”, diz o perito. “As caixas com misturas de ossos passarão por novas análises antropológicas específicas para casos dessa natureza e também terão amostras coletadas para análises genéticas no processo de reassociação (leia a respeito na entrevista abaixo). “Para lidar com toda a complexidade do projeto, trabalhamos com profissionais extremamente qualificados e procuramos utilizar os melhores recursos tecnológicos.”

Ele mesmo é exemplo dessa complexidade. Percorreu, por exemplo, 40 mil quilômetros por todo o país em busca de familiares dos desaparecidos. Foram colhidas, ao final, 80 amostras em 16 municípios.

ossadas perus

Samuel Ferreira no Caaf, ainda em 2014: ‘Continuamos empenhados e determinados na continuidade e na conclusão dos trabalhos’
(Foto: Danilo Ramos/RBA)

Depois de quase oito anos, que balanço pode ser feito do trabalho realizado com as ossadas de Perus? O GTP resistiu às intempéries?

Apesar de todas as dificuldades que ocorreram ao longo dos anos, o balanço dos trabalhos do projeto é positivo. Conseguimos identificar até o momento dois desaparecidos políticos, Dimas Casemiro e Aluizio Palhano, além de termos produzido e consolidado informações e realizado análises dos remanescentes ósseos com protocolos científicos atualizados que precisavam ser feitas.

Desde o início do projeto, já sabíamos da complexidade dos trabalhos. Houve dificuldades e desafios de diversas naturezas, mas de uma maneira geral todos eles foram e têm sido superados com o trabalho, a determinação e o comprometimento da nossa equipe de profissionais da área técnico-científica. E com o trabalho e apoio das instituições que integram o projeto e dos familiares de desaparecidos políticos.

Entre as dificuldades que tivemos, a pandemia foi a que mais impactou e ainda impacta o projeto, tendo causado a suspensão das atividades presenciais técnicas de análises dos remanescentes ósseos por um longo período e adiado a estimativa do término dos trabalhos. Mas todas as atividades que poderiam ser realizadas a distancia foram e continuam sendo realizadas, de forma que o projeto como um todo não parou. Felizmente, retomamos parte das atividades técnicas presenciais no laboratório de antropologia no Caaf, obedecendo aos critérios de biossegurança no contexto da pandemia.

Continuamos empenhados e determinados na continuidade e na conclusão dos trabalhos técnico-científicos do projeto, para que possamos dar uma resposta para os familiares de desaparecidos políticos e para a sociedade brasileira, que aguardam há 32 anos por esta resposta.

Aline Oliveira, Samuel Ferreira e Ana Paula Veloso: reinício dos trabalhos, já com medidas impostas pela pandemia, em setembro de 2021 (Foto Arquivo GTP)

O que deve ser feito nos próximos meses?

No momento, estamos trabalhando na coleta de amostras ósseas de cerca de 150 casos individuais para análises genéticas. A estimativa é de que até o final do mês de abril essas coletas já tenham sido finalizadas e estejam aptas para serem enviadas para análises genéticas no laboratório da ICMP, instituição internacional sediada na Holanda e com a qual temos parceria.

É importante ressaltar que os trabalhos continuam e ainda há muito o que ser feito. Após o envio dessas amostras para análises genéticas, iniciaremos os trabalhos de reassociação. Esta etapa envolve as análises antropológicas dos casos com misturas de remanescentes ósseos, as coletas de amostras ósseas desses casos para análises genéticas e a interpretação dos resultados genéticos com as informações antropológicas no contexto dos casos com misturas e dos casos individuais. Este trabalho é fundamental para que possamos, do ponto de vista técnico científico, realizar tudo o que for possível para identificarmos desaparecidos políticos que estejam entre os remanescentes ósseos exumados da vala de Perus.

O sr. tem estimativa para o término do trabalho?

Preferimos no momento não estimar datas, em virtude de fatores alheios a nossa vontade e que não podemos prever, como foi e ainda é a questão da pandemia. Outro fator importante, e surpreendente, foi a recente a informação da venda do imóvel onde se localiza o Caaf. Assim, terá que ser desocupado até o final do mês de junho.

Com isso, será necessário transferir os remanescentes ósseos e a estrutura do laboratório do atual imóvel para um novo local. Felizmente, a Unifesp conseguiu um imóvel próprio para receber os remanescentes ósseos e a estrutura laboratorial e, assim, podermos continuar e finalizar os trabalhos.

Este novo imóvel ainda requer adaptação, o que demanda planejamento, tempo e investimentos. Portanto, existem fatores imprevisíveis que surgem e impactam na estimativa do término dos trabalhos, mas é importante ressaltar que o comitê científico, juntamente com os profissionais da área técnica e as intuições que compõem o projeto, estão empenhados na continuidade e conclusão do término dos trabalhos o mais rapidamente possível.

E sobre o destino final das ossadas?

Outra questão fundamental que nos preocupa muito é a destinação dos remanescentes ósseos após o término dos trabalhos. Nesse sentido, o comitê científico elaborou uma série de recomendações técnicas (confira aqui) para a construção de um memorial para destinação dos remanescentes ósseos exumados da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco (vala de Perus).

É extremamente preocupante trabalharmos nas análises técnicas dos remanescentes ósseos e ainda não termos a certeza e a garantia da construção de um memorial digno e adequado para os remanescentes ósseos e que atenda às recomendações técnicas do comitê científico e às expectativas dos familiares de desaparecidos políticos e da sociedade civil. Felizmente, este tema já está na pauta das próximas audiências do Gabinete de Conciliação (do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo), e esperamos que haja uma solução em breve. Estamos disponíveis e empenhados em contribuir em tudo o que for possível no âmbito das nossas atribuições técnicas.