Depois de 25 anos

Última etapa para as ossadas de Perus: perto, talvez, da identificação

Material encontrado em 1990 em cemitério está sendo analisado por equipe de peritos formada a partir de parceria entre Presidência, prefeitura de São Paulo e Unifesp. 'Para que não haja mais dúvidas'

fotos: danilo ramos/rba

Peritos fazem catalogação das ossadas na Unifesp; ao fundo, fotos de 40 desaparecidos políticos

São Paulo – A caixa GTP 457 é posta sobre a mesa, ainda lacrada. Havia sido retirada de uma sala ao lado, climatizada a 17 graus (a temperatura pode variar de 15 a 19), ao lado de dezenas guardadas em estantes, em uma casa de uma rua tranquila de um bairro residencial na zona sul de São Paulo. Ali está parte das ossadas encontradas em 1990 em uma vala clandestina no cemitério Dom Bosco, em Perus, zona noroeste da capital. O fotógrafo Jacob Gelwan sobe em um latinha de tinta para obter a altura ideal e faz a primeira imagem – repetiria essa ação várias vezes nos minutos seguintes. A caixa é aberta com uma tesourinha, e já é possível ver um saco plástico. Nova foto. Uma perita abre, outra descreve o meticuloso procedimento.

Desde setembro do ano passado, uma parceria entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura de São Paulo e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) possibilitou a criação de um Centro de Arqueologia e Antropologia Forense, que tem como primeira missão justamente a análise de 1.049 ossadas encontradas há 25 anos em Perus. Um material que esteve durante muito tempo submetido às piores condições de armazenamento, o que pode ter comprometido a identificação, em especial de desaparecidos políticos.

O secretário-adjunto de Direitos Humanos de São Paulo, Rogério Sottili, enfatiza essa questão. Ele lembra que as ossadas já haviam sido encontradas “em situação extremamente precária” na vala clandestina. Depois, foram levadas à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e permaneceram anos em locais inadequados. “Condições deploráveis”, diz Sottili. “Não é certo que identifique. Vamos trabalhar de todas as formas possíveis para que a gente possa chegar a um resultado, para que não fique uma dúvida sequer”, afirma, para acrescentar que as condições, desta vez, são as mais adequadas. “Temos uma avaliação de que nunca se chegou tão perto do processo de identificação. Temos recursos, temos determinação política das três esferas (Unifesp, Presidência e prefeitura).”

Na casa, há 17 peritos em tempo integral, com acompanhamento da Cruz Vermelha. Até agora, foram investidos em torno de R$ 4,7 milhões no projeto – R$ 4 milhões via Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, para pagamento de pessoal, e R$ 700 mil, via Ministério da Educação, para custeio e reforma da casa.

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Suplicy, Sottili, Ideli e Samuel Ferreira: todo o processo de identificação tem participação dos familiares

Acompanhamento

O trabalho é realizado na parte de baixo da casa, por onde se chega descendo uma rampa de garagem, pintada de verde. Numa faixa, tiras de Mafalda, personagem de quadrinhos criada pelo argentino Quino, e uma frase: Pienso, luego me desaparecen. Cuidam da caixa GTP 457 as peritas Marina Gratão, Marina Di Giusto e Aline Feitosa. Jovens, menos de 30 anos. A sigla refere-se ao Grupo de Trabalho de Perus, formado para acompanhamento sistemático do caso. As reuniões do comitê gestor são semanais, em uma sala na parte de cima da casa, onde também são recebidos familiares de mortos e desaparecidos. O número de cada caixa é o mesmo de quando foram retiradas de Perus e colocadas em sacos.

O saco plástico é finalmente aberto e, mais uma vez, fotografado. Aparece um crânio, sem a parte de cima. Depois a pelve. Outros ossos, vértebras. Mais fotos. O coordenador científico do grupo, o perito Samuel Ferreira, da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp, vinculada ao Ministério da Justiça), explica que ainda não é possível afirmar se aqueles ossos pertencem a um homem ou uma mulher. Isso só será determinado na etapa seguinte à da limpeza, depois que o material é lavado em um tanque – dependendo do estado de conservação, a limpeza poderá ser feita a seco ou com água.

Pode ser de um desaparecido político. Pode ser de uma vítima de esquadrões da morte. Já foram encontradas também caixas com ossadas de crianças, prováveis vítimas da epidemia da meningite em São Paulo nos anos 1970, cuja divulgação foi proibida pela ditadura. Segundo a ministra de Direitos Humanos, Ideli Salvatti, um quarto das caixas já abertas tinha ossos misturados. Uma delas, por exemplo, continha ossos de crianças com um osso esterno de adulto.

Depois é que a ossada será levada a uma sala para análise, catalogação e triagem. Ali estão três macas, onde se organizam peritos brasileiros e peruanos. Em uma das paredes, 40 fotografias de desaparecidos durante a ditadura. Já foram abertas 151 caixas e analisadas 144 ossadas. Apenas no ano passado, a partir de setembro, foram investigadas 112 caixas, e 26 tinham mais de uma pessoa, em um total de 141 conjuntos de restos mortais. Do que pôde ser determinado, eram 81 homens e 24 mulheres.

O novo secretário de Direitos Humanos do município, o ex-senador Eduardo Suplicy, visitou ontem (10) o local ao lado de Sottili e Ideli, e constatou que o trabalho desenvolvido ali é sinal de respeito aos familiares. “Esse esforço vem sendo realizado com muita seriedade e dedicação.” Também conheceu a casa o presidente de seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcos da Costa, novo parceiro do projeto. Outras entidades integraram o esforço conjunto, como a Polícia Federal (com alguma resistência inicial dos familiares) e o Serviço Funerário paulistano.

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Análise minuciosa das ossadas envolve vários especialistas, como antropólogos e arqueólogos

Violação

A maior parte das ossadas se encontra ainda no Cemitério do Araçá, para onde foram levadas em 2002, após a temporada de maus-tratos na Unicamp – cuja responsabilidade, por sinal, é objeto de ação movida em 2009 pelo Ministério Público Federal. As demais ossadas irão para a casa da Unifesp assim que a reforma da parte superior estiver concluída. O local tem vigilância da Guarda Civil Metropolitana, assim como a área do Araçá, que já sofreu tentativas de violação.

O caso de Perus é tratado com cuidado, porque mexe com sentimentos e expectativas de quem espera, enfim, ver reconhecidos seus mortos, para serem devidamente enterrados. Ideli e Sottili enfatizam que todo o processo é feito com acompanhamento dos familiares, em uma relação por vezes tensa. “É fundamental a gente reconhecer publicamente o papel histórico dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, inclusive para localizar a vala. Toda essa construção se deu com muita escuta, com muita participação social. Fomos adequando nossas diretrizes a partir dessa escuta, que foi tão necessária e continuará sendo”, diz o secretário-adjunto.

A ideia inicial, por exemplo, era fazer o trabalho no Instituto Médico-Legal (IML), proposta rejeitada pelos familiares, que queriam a Unifesp. Articulou-se, então, a formação do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense. “Essa demanda é muito antiga”, conta a procuradora Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. “Temos excelentes profissionais, mas ainda não havia uma estrutura dessa maneira”, observa, destacando ainda a importância de se montar uma equipe própria de peritos. “Estamos conseguindo fazer com que esses trabalhos saiam desse cenário de IML, de polícia”, diz Eugênia.

Novas investigações

Além disso, a análise de toda a documentação do cemitério deve levar a novas descobertas – por exemplo, de outros desaparecidos levados para Perus. As autoridades esperam ainda que o centro de arqueologia abra caminhos para outras investigações no país. Segundo a reitora da Unifesp, Soraya Smaili, no segundo semestre será aberto um curso para formação de profissionais nessa área. No caso de Perus, diz, três eixos foram seguidos: realizar um trabalho científico não limitado à medicina legal, fazer intercâmbio com profissionais estrangeiros (além dos peruanos, argentinos participaram das atividades iniciais) e garantir a participação permanente das famílias.

Ideli lembra que em uma reunião realizada em dezembro estava presente uma família que não era de desaparecido político. Uma das pessoas falou durante o encontro: Meu pai é um desaparecido da política de desaparecimentos. “Essa política infelizmente persiste”, constata a ministra.

Do material já analisado, Samuel Ferreira informa que três ossadas apresentam lesões compatíveis com projéteis de fogo. Outras seis, com objetos contundentes. As ossadas apresentam “diversos tipos de degradação”, que não têm atrapalhado o exame antropológico (para determinação de dados como sexo, idade e altura). Apenas depois dessa fase é que o material coletado será encaminhado para laboratórios especializados para elaboração do perfil genético. Até agora, segundo a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, foram contatados 56 familiares de 37 desaparecidos políticos.

O procedimento de DNA será feito no exterior, devido à quantidade. “Não temos condições de fazer no Brasil”, diz Ideli. Mas ela faz a ressalva de que alguns casos poderão ser agilizados, se forem encontradas ossadas com “fortes indícios” de serem de desaparecidos políticos. A estimativa é de que todo o processo – lavagem, secagem, catalogação, triagem e análise genética – leve um ano e meio. Houve controvérsias em relação à metodologia, especialmente após a saída dos peritos argentinos, mas Ideli afirma que tudo foi explicado aos familiares. “A prioridade absoluta são os desaparecidos políticos. Temos uma dívida.”