Em pauta desde 1995, casamento homoafetivo está distante de votação no Congresso

Iniciativas isoladas de parlamentares encontram resistência de colegas ligados à bancada evangélica

(Foto: Luiz30/Wikipedia)

São Paulo – Assim como na Argentina, as decisões relativas aos direitos homossexuais no Brasil continuam, via de regra, dependendo de sentenças isoladas do Poder Judiciário. Mas, até o momento, não houve nenhuma decisão favorável ao casamento homoafetivo, diferentemente do que ocorreu na nação vizinha, que já consumou quatro matrimônios.

Série: A várias vistas

Enquanto a Câmara de Deputados argentina prepara-se para aprovar a autorização da união civil entre pessoas do mesmo sexo, não há, atualmente no Brasil, ênfase sobre os projetos tratando do tema. Pioneiro, o Projeto de Lei 1.151, apresentado em 1995 pela então deputada Marta Suplicy (PT-SP), passou pelas comissões e chegou a plenário, mas acabou retirado da pauta em 2001. Antes de deixar a legislatura, não estava difícil prever o destino da matéria e a parlamentar se manifestou: “Parece-me absolutamente antidemocrático e injusto para com esta parlamentar que se retira desta Casa não ter a oportunidade de discutir e votar este projeto”.

 

Na ocasião, sob debates acalorados, o deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), que mais tarde viria a ser presidente da Câmara, demonstrou contrariedade ao tema, afirmando que Marta Suplicy fazia “apologia” a uma “tese indefensável”. “Deseja é criar um tumulto na família brasileira. Uma nação que não tem família não é uma nação”, afirmou em julho de 1996.

Em 2007, o texto da ex-prefeita de São Paulo voltou a plenário a pedido de Celso Russomano (PP-SP), mas o deputado não conseguiu convencer os colegas a respeito da importância da votação. Há ainda dois projetos, um de autoria de José Genoino (PT-SP) e outro de Clodovil Hernandez (morto em 2009), prevendo que se aplique à união homoafetiva todos os dispositivos previstos pelo Código Civil, à exceção do casamento.

Hermano Leitão, advogado que milita na área de direitos dos homossexuais, lamenta que apenas iniciativas isoladas sejam vistas entre os parlamentares. “O conservadorismo, sobretudo em relação aos que se dizem católicos ou cristãos, tem restringido muito as discussões e as aprovações. A religião, mais uma vez, tem sido um peso no avanço das leis sociais no Brasil e por aí afora”, avalia.

No Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem em sua fila duas arguições de descumprimento de preceito fundamental que defendem o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. No ano passado, a vice procuradora-geral da República, Deborah Duprat, pediu que o STF aplique imediatamente os mesmos direitos a todos os cidadãos. “Não subsiste qualquer argumento razoável para negar aos homossexuais o direito ao pleno reconhecimento das relações afetivas estáveis que mantêm, com todas as consequências jurídicas disso decorrentes”, destacou.

Há alguns casos, em primeira e segunda instâncias, de reconhecimentos de direitos sobre bens. Hermano Leitão avalia que, embora alguns magistrados sigam claramente fechados a novos pedidos, a posição mais surpreendente parte de promotores, que se valem da função de fiscais da lei para barrarem novas iniciativas. “Temos de fazer ações pontualmente para que se avance. Porque chega uma hora em que as iniciativas da sociedade são maiores que as dos políticos. A luta por direitos civis precisa nascer nas ruas”, afirma.

Sem leis brasileiras garantindo o matrimônio homoafetivo, benefícios têm sido obtidos diretamente com empresas, como nos casos de planos de saúde, ou na declaração de Imposto de Renda, na qual é possível colocar o parceiro ou a parceira como dependente. No fim do ano passado, o juiz Guilherme Madeira Dezem, da 2ª Vara de Registro Público de São Paulo, reconheceu que dois rapazes poderiam adotar o mesmo sobrenome. O magistrado entende que eles constituem uma unidade familiar, argumento que mostra que há setores do Judiciário abertos ao reconhecimento de direitos mais profundos. “O Congresso precisa, para acabar com todas as polêmicas havidas no Judiciário, editar uma lei que pacifique a questão”, afirmou o juiz.

Argumentos

Alguns dos argumentos apresentados por parlamentares dão mostra da dificuldade em levar adiante a discussão. O Pastor Pedro Ribeiro (PR-CE), ex-Secretário Executivo da Frente Parlamentar Evangélica e atualmente licenciado, defendeu, quando discursava sobre o aborto em 2006, que a homossexualidade é um sinal de como os homens desobedecem a Deus. Na ocasião, o pastor se referia a um projeto do deputado Maurício Rands (PT-PE) que prevê a inclusão de companheiro homossexual como dependente no INSS.

“Então, eu, Pastor Pedro Ribeiro, vou recolher meus impostos para dar assistência a um homossexual! Não que eu tenha algo contra o homossexual. Não! Eu sou contra o pecado que ele pratica, sou contra essa anomalia – desculpem-me, pois esse termo é um pouco pesado –, contra a prática que não condiz com o gênero com o qual Deus agraciou o cidadão ou a cidadã”.

O Projeto de Lei 5.167 de 2009, de autoria dos deputados Capitão Assumpção (PSB-ES) e Paulo Lira (PTC-SP), tem um caráter de precaução: estabelece que nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode ser equiparada à unidade familiar. “Independentemente de qualquer credo, buscando os registros da história da humanidade, verifica-se que nenhuma sociedade subsiste, ou subsistiu, sem a célula mater denominada família. Por outro lado, todas as sociedades que foram extintas, o foram devido à perda dos valores morais e familiares”, argumenta o texto.

Religião

Fora do Congresso, alguns grupos organizados se opõem às conquistas de novos direitos. É o caso da Corporação de Advogados Católicos da Argentina, cujo vice-presidente, Eduardo Sambrizzi, expôs suas opiniões no quarto capítulo desta série. “O matrimônio deve ser entre duas pessoas do mesmo sexo. O matrimônio está orientado à família, e a família depende da procriação. (…) É algo que depende da ordem natural”, afirmou.

María Rachid, presidente da Federação de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans da Argentina, entende que a oposição religiosa se mostra sempre que a sociedade tenta avançar. “É a mesma coisa que diziam do divórcio, do segundo casamento, do voto feminino, dos matrimônios interraciais. A hierarquia católica se arroga a representação do que é natural para embasar um discurso que, em definitivo, é discriminatório”, destaca.

Norma Castillo, argentina que se casou este mês por decisão da Justiça, entende que é esse o caminho fundamental para que o Congresso aprove o matrimônio para relações homoafetivas, evitando que pessoas como ela e a parceira tenham de ficar mais algumas décadas à espera de ações. “Sigam em suas coisas. Não fazemos mal a ninguém. Nós trabalhamos como todo mundo, somos iguais a todo mundo”, afirma Ramona Arévalo aos opositores à aprovação.

Foto original: Luiz30/Wikipedia

A várias vistas
A série A várias vistas narra o primeiro casamento entre mulheres da história da América do Sul. Norma Castillo e Ramona Arévalo, ambas de 67 anos, casaram-se em abril deste ano, em Buenos Aires, depois de 30 anos de convivência. A união foi autorizada por uma das decisões judiciais favoráveis concedidas nos últimos meses. Mas nem tudo são flores nessa história, e ainda deve haver mais resistência à oficialização do casamento.

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