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Correspondente internacional traz notícias de um Brasil que nega sua história

No país há mais de 50 anos, Jan Rocha reúne relatos que atravessam décadas turbulentas e revelam preocupações que seguem atuais. Debate hoje marca lançamento

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Jan Rocha em seu escritório no centro de São Paulo: por telefone ou telex, notas furavam o cerco e relatavam a situação brasileira

São Paulo – A inglesa Jan Rocha chegou ao Brasil, em 1969, como voluntária de trabalhos sociais na Amazônia e no Rio de Janeiro. Chegou no olho do furacão, porque o país acabara de entrar no período mais violento da ditadura, com o AI-5. Quatro anos depois, tornou-se a primeira correspondente da BBC – em 1984, passaria a trabalhar também para o jornal The Guardian. Ajudou a noticiar lá fora o que, muitas vezes, não se podia falar aqui. Agora, “neste momento de tentativas de negar a história”, como diz a jornalista, Jan Rocha lança um livro – Nossa correspondente informa notícias da ditadura militar brasileira na BBC de Londres – para lembrar tudo o que viu e reportou. E não foi pouco.

“Entre a segunda metade de 1973 e o fim da ditadura em março de 1985, eu enviei centenas de matérias sobre a situação política, sobre os problemas econômicos, sobre a inflação altíssima, o desemprego, a fome, os saques. Escrevi sobre a censura, a tortura, as prisões, os protestos dos estudantes, as greves dos trabalhadores, os manifestos de militares dissidentes. O assassinato de padres, jornalistas, líderes sindicais. A cassação de políticos. A abertura ‘lenta, gradual e segura’. A pragmática diplomacia brasileira. O acordo nuclear com a Alemanha Ocidental. As relações difíceis com os Estados Unidos. A crise do petróleo. A revolta dos cientistas. A corrupção escondida. O pacote de abril. A caça aos comunistas. O movimento pela anistia. A volta dos exilados. As bombas da ultra direita. O movimento das mulheres”, cita.

Transformação social e política

Jan lembra ainda da devastação da floresta, ataques ao índios, esquadrões da morte, a descoberta do torturador Ustra no Uruguai, o surgimento do PT e de Lula, o movimento das Diretas Já, a morte de Tancredo Neves e seu enterro “shakespeariano”. Em pouco mais de uma década, testemunhou profundas transformações sociais e políticas.

Tempos em que o jornalismo, além do risco constante, se exercia quase manualmente. Não havia internet, nem celular. As matérias eram mandadas por telefone ou telex (um aparelho que antecedeu o fax, que misturava máquina de escrever e linha telefônica). Ou, às vezes, “por fita cassete levada por algum passageiro internacional para driblar a censura da Polícia Federal”. Hoje, ela segue acompanhando as desventuras da política brasileira, em blog no site Latin America Bureau.

Panorama histórico

Lançado pela editora Alameda, o livro Nossa correspondente informa reúne em suas 468 páginas os despachos que a Ja Rocha mandava para a Europa. Em sequência cronológica, traçam um panorama histórico por meio de notas redigidas por Jan, que iam ao ar em inglês, além de traduzidas para o serviço em português da emissora. O pré-lançamento ocorre nesta sexta-feira (8), às 18h, com – além da autora – um trio de jornalistas: Verónica Goyzueta, Norma Couri e Marina Amaral. O evento será transmitido pelo Facebook e pela página da Alameda no YouTube. Na próxima quarta (13), haverá lançamento presencial.

No trabalho: entrevista coletiva na CNBB, em São Paulo, em 1982. Jan está em pé, à esquerda, com a filha Bruna (Foto: Douglas Mansur)

Tanto no prefácio (Rosental Alves, da Universidade do Texas) como no posfácio (Natália Viana), se ressalta a preocupação com o Brasil de hoje. “Nestes tempos em que o Brasil elegeu um presidente que teve que sair do exército por que planejava explodir bombas no Rio de Janeiro e passou três décadas elogiando a ditadura militar e justificando o uso da tortura, esta viagem ao passado através dos despachos de Jan Rocha para a BBC é mais importante do que nunca”, diz Rosental.

Clamor, trabalho escravo, CNV

Vencedora de dois prêmios Vladimir Herzog, a jornalista também foi uma das fundadores, no final dos anos 1970, do grupo Clamor, que dava apoio a presos e refugiados políticos. Já em 2001, ele coordenou pesquisa sobre trabalho escravo, a pedido da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e em 2014 seria consultora da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

A primeira nota publicada no livro é de 23 de setembro de 1973, sobre a escolha de Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho como “anticandidatos” do MDB à Presidência da República. Só havia dois partidos permitidos (o outro era a governista Arena) e a escolha dos presidentes era indireta. A última data de 22 de novembro de 1985, reportando a denúncia de dom Paulo Evaristo Arns sobre 444 integrantes da polícia e das Forças Armadas acusados de torturar presos políticos.

Histórias do Brasil

Está ali, por exemplo, a notícia da morte de Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo), em 1977, aos 62 anos, de bronquite. A manipulação da inflação de 1973 pelo governo, descoberta quatro anos depois. O primeiro congresso pela anistia, em 1978. A onda de saques em São Paulo, em 1983. Greve dos cortadores de cana em Pernambuco. História e histórias do Brasil por meio de relatos telegráficos e abrangentes.

Depois das notas, selecionadas pela filha Ali Rocha, há um capítulo destinado aos “bastidores” vividos pela repórter. Ela conta, por exemplo, que almoçou (em um restaurante romeno no centro de São Paulo) com Vladimir Herzog duas semanas antes do assassinato do diretor da TV Cultura no DOI-Codi. “Vlado estava alegre e irônico, como sempre”, comenta.

Os textos de Jan Rocha reúnem curiosidades, como em 1977, quando o chanceler alemão, Helmut Schmidt, em visita oficial, quis conhecer Lula, a contragosto do governo. O então sindicalista liderava greves que interrompiam a produção em fábricas originárias do país europeu, como Mercedes-Benz e Volkswagen. “Ficamos sabendo que houve um corre-corre nos bastidores para arranjar um terno para Lula”, recorda, para acrescentar que o metalúrgico apareceu trajando um “estranho terno verde”.