Famílias sem proteção

Justiça de São Paulo é a que menos cumpre decisão do STF sobre despejos na pandemia

Levantamento do Insper mostra que os judiciários estadual e federal de SP respondem por mais da metade das reclamações ajuizadas por descumprimento da decisão que, desde junho de 2021, suspende reintegrações de posse

Reprodução/Facebook
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ADPF suspende a execução de qualquer determinação de despejo ou reintegração de posse no período da pandemia, até o dia 31 de março de 2022

São Paulo – O Judiciário do estado de São Paulo responde por mais da metade das reclamações ajuizadas no Supremo Tribunal Federal (STF) por descumprimento da decisão que suspende as reintegrações de posse em meio à pandemia de covid-19. De 102 decisões do Supremo determinando a suspensão de despejos na pandemia, com base na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, 53 são de ações oriundas de São Paulo. Os dados fazem parte de um levantamento do Núcleo de Questões Urbanas do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). 

A ADPF suspende a execução de qualquer determinação de despejo ou reintegração de posse concedida no período da pandemia, até 31 de março de 2022, seja em área urbana ou rural. Também proíbe a desocupação de imóveis alugados nos casos de inquilinos com aluguel atrasado, fim do prazo acordado ou demissão do locatário em contrato vinculado ao emprego. A ação foi proposta pelo Psol, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e outras organizações, no ano passado.

A doutora em Direito e professora do Insper Bianca Tavolari destaca que, atualmente, somente a decisão do STF sobre a ADPF impede uma avalanche de despejos no Brasil. Isso porque a Lei 14.216, aprovada em outubro do ano passado, perdeu a validade em 31 de dezembro e não há previsão de prorrogação.

As hipóteses

“Ainda que tenha um requerimento de vários deputados e deputadas sugerindo uma prorrogação (dessa lei) para até junho deste ano, o requerimento nem foi pautado e não tem urgência. Ele foi apenas apresentado e até agora a gente não tem nenhuma sinalização de que o Legislativo entendeu que essa é um prioridade. Então na verdade, hoje, o que mantém essas pessoas protegidas é a decisão do Supremo”, observa.

Os dados do Insper indicam que ao menos 24.623 pessoas foram protegidas de despejos a partir de reclamações feitas ao STF, por descumprimento da ADPF, a maior parte de São Paulo. No entanto, não é possível saber quantos despejos foram realmente impedidos com base na lei, já que os dados se referem às reclamações que chegam à corte. Os estados cujos judiciários estadual ou federal cumpriram a decisão do STF não estão contabilizados. 

Bianca aponta alguns fatores que explicariam o motivo de São Paulo liderar as reclamações, mas ressalta que ainda não há uma conclusão. “Uma das hipóteses é a que o estado de São Paulo tem o maior número de aglomerados subnormais – (ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia) – pelo levantamento do IBGE. Então o conflito coletivo é muito presente no estado. Mas isso por si só não explica, a gente tem outros estados que têm conflitos fundiários muito marcados como Rio Grande do Sul, Pará, Paraná. E a gente teria que encontrar também reclamações desse tipo, uma quantidade expressiva se a gente levasse apenas esse critério em consideração”, pondera a professora.

Despejos continuam

“Mas há outros elementos, o acesso à Justiça, especialmente pela Defensoria Pública de São Paulo que tem um núcleo especializado em urbanismo que fez parte de boa parte dessas reclamações. Há um acesso à justiça específico que ajuda a entender essa rede de atores institucionais que levam essas reclamações ao Supremo. Mas também tem uma terceira variável que não temos como testar, mas que está na mesa para pensarmos, que podem ser que nos outros estados, os juízes de primeira e segunda instância, neguem menos e as partes não precisam chegar até o Supremo”, elenca às hipóteses.

A professora do Insper destaca ainda que os motivos que levaram à primeira prorrogação da validade da ADPF continuam válidos. E a expectativa é a de que a norma seja novamente prorrogada para além de 31 de março deste ano. De acordo com ela, o processo de prorrogação da Lei 14.216 no Congresso é muito mais lento e pode deixar muitas famílias em situação de risco de despejo. 

Falta de moradias e políticas

O advogado e coordenador da Central de Movimentos Populares (CMP) Benedito Barbosa, o Dito, lembra que a falta de moradias é consequência da ausência de políticas públicas de habitação. Que aliadas aos aumentos do desemprego e da inflação, impedem que as famílias consigam, até mesmo, morar em favelas ou cortiços, terminando jogadas nas ruas.

“A relação da moradia com a pobreza é direta. As pessoas não têm condição de adquirir uma moradia nem em um cortiço ou em uma favela. Morar em Heliópolis hoje, em certas condições, é muito difícil para uma família, é muito caro. Há uma inflação da moradia até nas regiões mais empobrecidas. E como não se tem política habitacional nem municipal, estadual e federal a situação se agrava ainda mais associada ao desemprego, à pobreza e à desigualdade. Outro elemento é o aumento brutal da população em situação de rua. Antes da pandemia e na cidade de São Paulo, os levantamentos oficiais davam conta de 25 mil pessoas em situação de rua. E agora, pelo levantamento dos movimentos, aponta-se mais de 60 mil pessoas nas ruas. E esses números aumentaram em todo o país”, alerta Dito.

O Brasil foi um dos países com a pior atuação na proteção de famílias contra despejos em meio à pandemia. Além da demora na adoção de políticas para lidar com o problema, a Campanha Nacional Despejo Zero aponta que, desde março de 2020, mais de 23 mil famílias foram despejadas de suas casas. E, até dezembro de 2021, outras 123 mil estavam sob risco de serem expulsas de suas moradias. Apesar disso, em pouco tempo de aplicação das normas contra despejos, a campanha identificou ao menos 11 mil famílias, em 81 comunidades, que tiveram seus despejos suspensos.

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