três é demais?

Lei dá poder de polícia a guardas civis do país, mas não prevê articulação

Para especialistas em segurança pública, legislação pode abrir espaço para amplo debate na sociedade, mas incertezas podem piorar cenário atual

Jaelson Lucas/Prefeitura de Curitiba

Em várias cidades, como em Curitiba (F), guardas já tinham atividade de polícia armada. Lei pode afastar corporação do militarismo

São Paulo – Para quem acreditava que duas polícias, a civil e a militar, eram demais, é bom se preparar: uma terceira deve começar a operar em breve. Na verdade, ela já está nas ruas em 993 das 5.570 cidades do país, mas, no último dia 16, o Senado aprovou o Projeto de Lei 39/2014, que dá poderes de polícia às guardas civis municipais. O texto, que só aguarda a sanção da presidenta Dilma Rousseff, estabelece, por exemplo, a obrigatoriedade de formação civil e controle interno e externo das guardas, hoje restrito apenas a 21% das corporações espalhadas pelo país. Por isso, especialistas em segurança pública ouvidos pela RBA acreditam que a lei não é “necessariamente ruim”, já que regulamenta a atuação, mas veem como principal desafio a articulação entre municípios, estados e União para a criação de um sistema de segurança pública.

A existência de policiais municipais é comum em países como México, Estados Unidos e Espanha. No Brasil, o projeto tramitou por 11 anos e é uma antiga demanda dos guardas, que se queixam do tratamento de “guardas de praça.”

Com o aumento da criminalidade no interior do país, as guardas exercem atividade de polícia em várias pequenas cidades. Muitas delas com padrão de atuação truculento e reprodução dos métodos militares.

Segundo dados do último Perfil dos Municípios Brasileiros, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em mais de um terço das cidades que têm guarda civil, o comando está nas mãos de policiais militares ou bombeiros.

Em 32 cidades, são militares das forças armadas no comando. Com a nova regulamentação, em até quatro anos, todas as guardas municipais do país terão de ser comandadas por GCMs de carreira.

“A PM faz policiamento ostensivo. A Civil investiga. E a GCM vai fazer o quê? Isso não está claro”, aponta o vice-presidente do Fórum Nacional de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima.

“Nenhuma instância como as do SUS (Sistema Único de Saúde) foi criada. Nenhuma câmara de decisão, conselho de municípios, para dizer qual é o armamento mais adequado, qual o protocolo de operações, ou de uso da força”, pontua. “O desafio posto é: como articular para fazer as guardas serem capazes de contribuir? Ou a lei se trata apenas de autorização para portar uma arma?”, questiona Lima.

A lei caracteriza as guardas como “uniformizadas e armadas”. Atualmente, os guardas de cidades com mais de 50 mil habitantes podem portar armas durante o serviço. Nas capitais e cidades com população superior a 500 mil pessoas, também estão autorizados a usar fora do expediente.

Em 43,3% das 993 cidades que têm esse tipo de serviço, os guardas andam sem qualquer tipo de armamento e, em 41%, usam apenas armas não letais. O texto ainda enfatiza as corporações como civis, sendo inclusive necessária a formação de centros de treinamento diferentes dos disponíveis para a Polícia Militar, além de determinar que, em até quatro anos após a sanção, os comandantes sejam funcionários de carreira da própria guarda, o que é apontado como positivo.

“A ideia é justamente fugir do modelo das PMs. Isso não significa não ter hierarquia, não ter disciplina. Apenas significa que a instituição presta contas à sociedade e não ao Estado, mas o risco é que, pela falta de articulação, o modelo civil seja visto como pior que o militar, que é o que queremos superar”, afirma.

Para Lima, o ideal seria criar instâncias de articulação como as do SUS, que são pactuadas por governo federal, estadual e municípios.

Para a professora do programa de pós-graduação da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro, Jaqueline Muniz, a preocupação em relação à criação de mais uma polícia parte de uma falsa questão. “As guardas municipais, desde a criação, eram polícias de fato, conceitualmente falando, mas não de direito. Essa contradição levava a sérios problemas de gestão, estruturação dessas organizações. A regulamentação era fundamental”, argumenta.

Ela aponta, no entanto, que toda a segurança pública no país carece também de marcos legais mais claros. “Nós não temos um pacto federativo para a questão da segurança pública que determine quais são as competências exclusivas e partilhadas entre as organizações policiais. Isso faz com que todos atuem com um pé na informalidade e outro na invisibilidade de suas ações. O que é muito ruim”, pondera.

Para Jaqueline, a ausência desses marcos tem a ver com a manutenção de polícias submissas e “vulneráveis a mandonismos políticos.” Por isso, acredita que a aprovação da lei é uma “boa emenda para um soneto desafinado.”

“O problema não está na Guarda Municipal. Ela, assim como a Guarda Nacional, era um ornitorrinco. O problema está nesse limbo que possibilita abusos e mau uso da força”, ressalta.

Jaqueline avalia que, em países divididos em unidades federativas, como o Brasil, é “desejável e recomendável” que o poder de polícia esteja distribuído entre os federados. “Para a saúde da democracia, é saudável que não tenha concentração do poder de polícia na mão de poucos. Onde isso ocorreu, houve tentativas de golpe ou guerras”, explica.

Contudo, a professora destaca que a municipalização da segurança não significa, exclusivamente, a criação de polícias municipais. “Ela é um recurso a serviço da segurança pública, porém, o processo não se reduz à criação de guardas municipais.”

Para o presidente do Sindicato dos Servidores Municipais e Autárquicos de São Bernardo do Campo, Giovani Chagas, que é guarda municipal, a lei padroniza a atuação e traz avanços em relação ao policiamento preventivo e comunitário que, na sua opinião, será a função da guarda. No entanto, isso dependerá da “vontade política” de cada cidade. “Em algumas cidades, as guardas já são mais polícia que a polícia, de tão atuantes e armadas que são. Os municípios vão ter que fazer adaptações. As guardas vão ter que seguir um padrão”, defende.

Contudo, há também quem aponte que a aprovação da lei abrirá espaço para que se desenhem novos modelos de atuação das polícias. É caso dosociólogo da Universidade de Brasília (UnB) Antônio Testa, que se baseia no argumento de que o texto vai precisar de regulamentação própria em cada cidade.

Testa, no entanto, lembra que a Confederação Nacional de Municípios se posicionou contra a lei, por entender que a maioria das cidades brasileiras não tem como arcar com os custos da implementação de uma guarda.

“A lei prevê um fundo nacional, mas já sabemos que a burocracia e a falta de capacidade de gestão é uma realidade que dificulta para as pequenas cidades.” Ele entende que, sancionada a lei, haverá uma demanda crescente para que as cidades assumam a responsabilidade pela segurança e a criação de novos empregos.

“Existe uma sensação de insegurança nas cidades e a população vai exigir mais participação. Se houver essa participação na definição das obrigações, pode ser bom, mas se tiver um coronel (no controle da guarda), isso é um problema.”

A avaliação vai na mesma direção do argumento de Renato Sérgio de Lima. “A aprovação pode ser a oportunidade para que os governos federais, estaduais e municipais se articulem em torno de um projeto de modernização. Do contrário, vamos correr um sério risco de piorar ainda mais o que já é ruim”, enfatiza.