Revitimização

Governo Nunes suspende aborto legal e força meninas vítimas de estupro a recorrer a outros estados

Procedimento foi suspenso em dezembro, sem aviso prévio, pela prefeitura de São Paulo em hospital de referência. Em outro caso, paciente que também sofreu agressão sexual afirma ter sido revitimizada ao procurar por outro hospital, que cometeu violência obstétrica

Divulgação
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Defensoria diz que "a ausência de suporte médico às usuárias (do SUS) pode representar violação aos direitos de dignidade, saúde sexual e reprodutiva"

São Paulo – A decisão do governo do prefeito paulistano, Ricardo Nunes (MDB), de suspender sem aviso prévio, em dezembro, o serviço de aborto legal no Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte da cidade, já fez com que ao menos 20 meninas e mulheres, em sua maioria vítimas de estupro, tivessem seus atendimentos descontinuados ou não conseguissem assistência médica na unidade.

Em dois casos, jovens que sofreram violência sexual só puderam interromper suas gestações após serem levadas por uma ONG a unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) em outros estados. Uma delas, de 12 anos, precisou ir até Uberlândia, em Minas Gerais. E a outra, de15 anos, teve que viajar a Salvador para ter acesso ao procedimento previsto em lei.

As informações, do jornal Folha de S. Paulo, foram confirmadas pelo Projeto Vivas. A organização, que se dedica a viabilizar o acesso à interrupção legal da gravidez, é quem contabiliza o número de negativas depois de ser procurada pelas duas dezenas de pacientes. De acordo com a diretora-executiva do Vivas, a advogada Rebeca Mendes, as duas meninas, que já haviam enfrentando episódios de violência, se viram revitimizadas depois de procurar a unidade de saúde e terem o acesso ao serviço negado.

Périplo por direito ao aborto legal

“As mães estavam descrentes e desesperançosas de que conseguiriam garantir o direito das filhas. Elas contavam que as meninas estavam tristes, com vergonha de as amigas descobrirem a gestação, e estavam afastadas da escola”, observou a advogada ao veículo. O drama é compartilhado por uma terceira mulher, também vítima de estupro, que denunciou à reportagem ter enfrentado um périplo para conseguir garantir seu direito.

A vítima buscou o hospital Cachoeirinha pela primeira vez no dia 5 de dezembro. Após passar em consulta com médico e assistente social, o procedimento foi agendado para o dia 20. Ao chegar no local na data marcada, porém, ela foi informada de que não seria possível dar prosseguimento ao aborto devido à suspensão do serviço pela gestão Nunes.

No mesmo dia, a paciente foi ao Hospital da Mulher, gerido pelo governo estadual de São Paulo. No local, ela afirma ter sido informada de que teria que começar o atendimento novamente, desde o início. “Tive que relatar tudo o que passei (da violência sexual) de novo”, lamentou. Após a nova triagem, a interrupção da gestação ficou marcada para a última quarta-feira (3). A paciente, no entanto, denuncia ter sido vítima de violência obstétrica na unidade, onde ficou por horas com dor e suja por urina e fezes, até realizar o procedimento.

“Eu tenho 36 anos, mas uma menina de 12 anos, 11 anos, que chega lá, que a gente vê muito, talvez não aguente o processo que eu passei. Eu só queria fazer o procedimento, acabar com isso. E, de repente, vou ficar com outro trauma. Me senti oprimida, como se eu tivesse que desistir”, afirmou ao veículo.

Fechamento sem aviso

Ainda em dezembro, a prefeitura alegou que a paralisação do serviço é para que “sejam realizadas no local cirurgias eletivas, mutirões cirúrgicos e outros procedimentos envolvendo a saúde da mulher”. A Secretaria Municipal de Saúde também justificou que outras quatro instituições municipais referenciadas para os casos de aborto legal seguem realizando a interrupção. Elas são o Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mario Degni, o Hospital Municipal Tide Setúbal, o Hospital Municipal Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha e o Hospital Municipal Dr. Carmino Caricchio.

No entanto, a diretora do Projeto Vivas afirma que nenhum dos equipamentos da capital paulista tem realizado o procedimento acima de 22 semanas de gestação. Por isso a necessidade de se procurar hospitais de outros estados. “Eles se baseiam em uma norma técnica de 2012 que o próprio Ministério da Saúde já falou que é ultrapassada. A lei, que é o que importa, não determina [um limite para a interrupção]. Mesmo assim, continuam a usar essa desculpa”, critica Rebeca.

No Brasil, o aborto é previsto em lei quando há risco à vida materna, em casos de estupro e de gestação de feto anencéfalo. O fechamento do hospital de referência vem sendo questionado pelo Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da Defensoria Pública de São Paulo. Para o órgão, “a ausência de suporte médico às usuárias (do SUS) pode representar violação aos direitos de dignidade, saúde sexual e reprodutiva”.