Descriminalização

Julgamento no STF reacende debate sobre a legalização do aborto

Movimentos de mulheres vão às ruas de todo o país nesta quinta (28), Dia de Luta pela Descrminalização e Legalização do Aborto, para que o Brasil faça parte da “onda verde” latino-americana

Fernando Frazão/Agência Brasil
Fernando Frazão/Agência Brasil
Na América Latina, pelo menos seis países já legalizaram a interrupção voluntária da gravidez. No caso do México e da Colômbia, por exemplo, a decisão também foi do Judiciário

São Paulo – O julgamento da ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez no Supremo Tribunal Federal (STF) reacendeu o debate em torno da questão. Os conservadores, inclusive evangélicos, se mantêm firmes contra a legalização. Já os progressistas, mais atuantes na defesa. Por isso, esta quinta-feira (28), Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe, será marcado por atos em todo o país.

Na capital paulista, a Frente de São Paulo contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto convoca partidos, movimentos e coletivos para ato unificado a favor da pauta. A concentração começa às 17h no vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp), na avenida Paulista. 

Relatora da ação, a ministra Rosa Weber, que deixou ontem a presidência do STF, registrou na última sexta-feira (22) seu voto a favor de que a prática não seja considerada crime. O ministro Luís Roberto Barroso, que hoje assume a presidência, pediu que o julgamento fosse suspenso e levado ao plenário físico. A nova data ainda não foi marcada. 

Enquanto no Brasil a questão está ainda sendo discutida, diversos países da América Latina já legalizaram o procedimento. Em 2012, enquanto o Brasil ainda decidia se o aborto de anencéfalos era crime ou não – o STF decidiu que não –, o Uruguai já legalizava a prática, independentemente da situação da gestante e da concepção. Em 2020, 2021 e 2022, a Argentina, o México e a Colômbia, respectivamente, se juntaram ao Uruguai.

A descriminalização é uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que defende que seja um direito de todas, sem limite de idade gestacional, e que se opte preferencialmente pelo aborto medicamentoso, com misoprostol e mifepristona, proibidos no Brasil.

Na região metropolitana de São Paulo, a pauta ganhou destaque neste mês. A Câmara de Santo André, por exemplo, promulgou a Lei 10.702, proibindo que qualquer órgão da administração local, direta ou indireta ou autarquia “incentive ou promova a prática do aborto”. A legislação, de autoria do vereador Márcio Colombo (PSDB), vai na contramão do Artigo 128 do Decreto-lei 2.848, que proíbe a punição de médico que executa o procedimento para salvar a gestante e em caso de estupro da mulher. No Brasil, o aborto é considerado legal em casos de gestação decorrente de estupro, risco de vida à gestante e anencefalia fetal.

Julgamento moral 

Para a médica ginecologista e obstetra Helena Paro, a postura de profissionais mais conservadores quanto ao direito ao aborto em qualquer circunstância é um elemento que gera negligência em consultórios e hospitais, estendendo-se até mesmo às pacientes que estão respaldadas pela lei. A médica trabalha há cerca de seis anos com aborto legal e afirma que a atividade devolveu a ela “o sentido da vida”, pois se sente bem ao ajudar jovens. Helena citou uma paciente atendida há poucos dias que engravidou após ser vítima de estupro. Ela conta que, se a jovem mantivesse a gestação que não queria e nem programou para ter, reduziria a quase zero as chances de realizar o sonho de cursar arquitetura.

“O sofrimento maior é o do estigma e o de morrer na clandestinidade”, resume a profissional, que é professora de Medicina e integrante do Nuavidas do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais.

Helena afirma que grupos contrários à descriminalização pressionam quem é a favor e, no seu caso, apresentam questionamentos a órgãos públicos. “A gente tem um Estado laico, mas também uma cruz nas paredes dos salões das sedes dos Poderes”, disse à Agência Brasil, fazendo referência ao símbolo colocado nesses locais e à interferência do cristianismo na tomada de decisões e na proposição de leis. A ginecologista argumenta que “o aborto que mata é o clandestino”.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto 2021, estima-se que 5 milhões de mulheres tenham feito aborto em todo o país. A proporção é de que uma em cada sete já fez o procedimento até os 40 anos de idade, e 81% delas têm religião. Isso sugere que, mesmo com suas crenças, elas consideram ser mais urgente resolver a gravidez por não desejar dar à luz naquele momento. O estudo indica também que muitas das mulheres têm religião de linha conservadora e, mesmo assim, fazem o aborto, ainda que não compartilhem a decisão com outras pessoas. Para movimentos a favor da legalização, a atitude revela hipocrisia.

Perigos e barreiras

Os movimentos feminista e mulherista chamam a atenção para o fato de que o aborto clandestino coloca as mulheres em situação de maior vulnerabilidade e, por essa razão, defendem que se trata de uma questão de saúde pública. Essa associação pode ser observada por meio de outro dado da pesquisa nacional: 43% delas precisam ser hospitalizadas após o procedimento.

O risco do aborto feito de modo improvisado, sem a proteção legal e, portanto, sem assistência adequada de profissionais de saúde, pode levar à morte e, nesse cenário, a maioria é negra. De acordo com o mais recente levantamento oficial do país, 64% das mulheres que perderam a vida após tentar fazer um aborto não especificado – termo mais usado para os abortos clandestinos – tinham esse perfil, tendo como base o intervalo de 2012 a 2021. De 2012 a 2019, mais de 192 mil mulheres foram internadas após abortos não especificados ou após a tentativa dar errado.

A advogada Letícia Vella, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, avalia que, se a mentalidade do país fosse outra, o acesso seria mais fácil até para quem tem, atualmente, direito a fazer um aborto. “As barreiras são inúmeras”, observa.

Ela citou, entre essas barreiras:

  • poucos serviços que oferecem consultas para que se chegue à possibilidade de realização do procedimento;
  • objeção de consciência por parte dos profissionais; 
  • limite de idade gestacional; autorização judicial, quando não é necessária e desconfiança na palavra das mulheres;
  • tentativas de verificar a compatibilidade da idade gestacional com a época da violência (estupro) e a desconsideração de doenças crônicas.

Relato

A designer Ísis* tinha 39 anos e saía há um mês com seu companheiro, apesar de o conhecer há anos, quando descobriu a gravidez indesejada. O relacionamento era tão recente quanto o emprego que conseguira. Pela lei em vigor no Brasil, Ísis não poderia realizar um aborto. Ela chegou a tomar a pílula do dia seguinte para evitar a gravidez, mas não funcionou.

A ajuda chegou por meio de pessoas de sua confiança, em sua maioria mulheres que indicaram contatos para a compra de substâncias abortivas. Ísis também consultou um médico para saber como deveria tomar o medicamento, que adquiriu com dinheiro guardado na poupança, e para conhecer os riscos. Ela contou com o apoio do companheiro, que teve receio de que ela morresse ou ficasse com sequelas após o procedimento.

“Também conheço uma moça que, mesmo tendo dinheiro, quase não conseguiu abortar. Ela estava grávida de gêmeos. Só soube quando foi verificar no exame transvaginal”, conta Ísis, acrescentando que o aborto de um dos fetos não foi feito com sucesso e que ela precisou recorrer a doses de mifepristona, que obteve por meio de um coletivo feminista.

“Eu não estava preocupada em morrer, estava preocupada em parir sem ter planejado. Eu tinha pouquíssimo tempo no emprego. Imagina a confusão”, afirma.

Com Agência Brasil