ferida aberta

Estado tem de garantir perspectivas de futuro aos mais de 113 mil órfãos da pandemia, diz assistente social

Mais de 100 mil crianças e adolescentes que perderam familiares na pandemia são “invisíveis” para os governos, de acordo com Aldaiza Sposati que critica redução da orfandade à miserabilidade. Precisam mais que ajuda financeira

Laurin Rosa – Flickr
Laurin Rosa – Flickr
"A orfandade é uma ruptura da filiação. E com isso você tem um conjunto de demandas de saúde mental", destacou Aldaiza Sposati

São Paulo – O despreparo dos governos em lidar com as dificuldades enfrentadas pelos mais de 113 mil órfãos deixados pelos quase 700 mil mortos na pandemia no Brasil prova que o Estado brasileiro ainda não enfrentou a chamada sindemia da covid-19, que agravou diversos problemas de saúde. A afirmação é da assistente social e professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Aldaiza Sposati.

“Nós estamos vivendo nesse momento, digamos, uma herança da pandemia, que são essas formas endêmicas. E temos que correr atrás daquilo que ocasionou (as endemias) e não só restaurar, como progredir no sentido novo. A orfandade é uma ruptura da filiação. E com isso você tem um conjunto de demandas de saúde mental. (…) Essas crianças e adolescentes passam por uma ruptura das suas relações de filiações e com isso perdem seus vínculos de ancestralidade e seus significados nessas relações”, disse Aldaíza.

A assistente social e professora, que já foi vereadora e secretária de Assistência Social na gestão de Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo, foi a convidada do 16º episódio do PodSin – Diálogos da Psicologia com a sociedade – podcast do Sindicato das Psicólogas e Psicólogos de São Paulo (SinPsi-SP). Durante sua participação ela detalhou as medidas reparatórias que o Estado deve assumir para além da questão financeira. De acordo com Aldaiza, é uma “afronta ao direito da criança e do adolescente” reduzir a orfandade à miserabilidade, como tem sido feito.

2º país com mais órfãos da pandemia

Aldaiza também rebateu a associação da orfandade a apenas o abandono ou adoção, em que se procura como solução um benefício. Para a especialista, não é disso se trata, mas sim da qualidade das crianças e adolescentes que perderam seus responsáveis. O que coloca em jogo seu pertencimento e história, principalmente diante de uma perda abrupta, como ocorrido com a covid-19.

Pela estimativa da Escola de Saúde Global de Harvard sobre o número de órfãos no país, pouco mais de 0,5% da população brasileira perdeu a mãe, ou o pai e avó ou avô, ou ambos para o vírus. O Brasil é ainda a segunda nação com mais órfãos em consequência da pandemia, atrás apenas do México.

A assistente social vem acompanhando estudos que mostram também que o número de órfãos adolescentes é superior ao de crianças que perderam pais e mães. A falta de referência dos genitores, ainda segundo ela, agrava uma fase já complicada da vida.

Desafios e medidas reparatórias

“A pergunta que tem que se fazer é: como esse sistema, que é interinstitucional – tem a Justiça, o Executivo e o próprio Parlamento –, esta efetivamente agindo e atuando? Como as escolas estão voltando não só à normalidade anterior, mas a essa situação, digamos, de afastamento relacional desses adolescentes? Temos novas situações relacionais que precisam de aprofundamento. E temos quer ter uma unidade de busca e conhecimento para enfrentar essa situação. Não se enfrentou ainda a sindemia da covid-19. O bichinho (vírus) pode estar quieto, mas a inquietude que ele gerou não está acometida absolutamente”, afirmou.  

Na conversa com o jornalista Norian Segatto, a especialista também cobrou do Ministério de Desenvolvimento Social a articulação de políticas intersetoriais. “Fica só com uma cabeça de estado fiscal, altamente seletivo, não é uma questão apenas monetária… é claro que há o direito de reparação pela omissão do estado, mas não é apenas isso”, concluiu Aldaiza Sposati.

Sobre o podcast

O PodSin – Diálogos da Psicologia com a sociedade – foi lançado no primeiro semestre deste ano como parte das comemorações de 50 anos do Sindicato dos Psicólogos de São Paulo, comemorado em agosto. A proposta do programa é refletir sobre temas da atualidade, ligados direta ou indiretamente com a psicologia, e travar um diálogo com os mais amplos campos da sociedade. A íntegra do programa está disponível aqui.

Redação: Clara Assunção