Câmara prepara votação de anistia a sobreviventes de massacre em Rondônia

Projeto na CCJ é esperança para Claudemir Ramos, sem-terra condenado após matança promovida por policiais em julgamento criticado pela OEA, que cobra nova investigação

Na última semana, o ministro José Eduardo Cardozo manifestou durante audiência com deputados apoio ao projeto (Foto: gabinete João Paulo Cunha)

São Paulo – Claudemir Ramos pensa em se entregar. Depois de mais uma noite perturbado, sozinho, ele só quer acabar com tudo de uma vez. Mas toma ar, esfria os pensamentos, volta a se conformar. “Até há poucos dias tinha decidido me apresentar, mas achei que era covardia da minha parte. Era mais um que iria se calar. Não vou pagar o que não devo”, diz.

Há nove anos Claudemir não sabe o que é vida social. Esconde-se com medo dos pistoleiros de   e com raiva do Judiciário por ter de cumprir uma pena que não considera correta. Desde 2004, esgotados os recursos com a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ele se considera um “foragido da injustiça”. Camponês nascido no interior do Paraná e vivendo desde pequeno no estado do Norte, ele foi considerado culpado por um massacre de sem-terra promovido por policiais.

Agora, vê ressurgir a esperança com a possibilidade de votação, na Câmara dos Deputados, de um projeto de lei que garante anistia a ele e a Cícero Pereira Leite, condenados com base em uma investigação conduzida pela Polícia Militar, responsável direta pelo massacre de Corumbiara, que deixou ao menos 12 trabalhadores mortos e 2 policiais. Na última semana, durante audiência com deputados e familiares de Claudemir, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, manifestou apoio à proposta do deputado João Paulo Cunha (PT-SP). Ficou acertado que o relator na Comissão de Constituição e Justiça, Vieira da Cunha (PDT-RS), fará um novo relatório no qual pedirá também anistia aos dois soldados condenados, e rapidamente devolverá o texto para apreciação dos parlamentares.  “Para mim é uma emoção muito grande. É uma luta de tantos anos”, disse, por telefone, Clauceli Ramos, irmã de Claudemir. 

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Na madrugada de 9 de agosto de 1995, agentes de segurança pública e pistoleiros invadiram a Fazenda Santa Elina, localizada a pouco mais de 700 quilômetros da capital Porto Velho, e promoveram uma chacina que teve entre as vítimas uma criança de sete anos, descumprindo o acordo fechado horas antes, de que o local seria desocupado na manhã seguinte. Os adultos foram deitados no chão, e os filhos, obrigados a pisoteá-los. Os policiais forçaram camponeses a comer terra misturada com sangue, e alguns tiveram de engolir partes dos cérebros dos companheiros mortos.

Claudemir guarda próxima à orelha uma cicatriz dos golpes de baioneta que tomou. Desacordado, foi levado a um hospital, e depois transferido a Porto Velho, onde houve mais de uma tentativa de matá-lo. Conseguiu ser levado a São Paulo graças a uma escolta extraoficial do então presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, hoje deputado federal.

A acusação inicial, contra 26 pessoas, incluindo o possível mandante do crime, Antenor Duarte do Valle, e 20 policiais, foi desfeita na fase inicial do julgamento, e apenas Claudemir e seu colega, Cícero Leite, acabaram condenados até a última instância com base na acusação do Ministério Público de que os dois ludibriaram uma massa de mais de mil camponeses, forçando-os a permanecer na fazenda, com documentos apreendidos. Cícero foi preso e cumpriu parte da pena.

Claudemir, não. A história dele, contada pela RBA no início de 2011, ganhou novos contornos. A vida é parada, isolada e só, mas os problemas são o mundo externo, que não para, e o relógio cronológico, que já marca 40 anos vividos entre luta pela terra, pobreza e fuga. “Tenho uma vida de perturbação porque não sei se vou ser preso ou vou ser morto”, lamenta, em uma manhã de janeiro, exatamente um mês depois de decidir se entregar – e de desistir dias depois, convencido por amigos de que não era o melhor caminho.

Em maio de 2011, seu pai, Adelino Ramos, o Dinho, foi morto por pistoleiros. “Queriam comprar ele para que deixasse tirar madeira, mas ele não se entregou. Morreu com honra”, recorda. Dinho chegou a ser denunciado pelo Ministério Público Estadual em condições parecidas às de Claudemir pelo massacre de Corumbiara, mas se livrou na fase de pronúncia dos réus, quando se decide quem vai a júri popular, e acabou se mudando para o oeste do estado. Nos últimos anos, era o líder do Assentamento Florestal Curuquetê, que fica em Lábrea, no Amazonas, próximo da divisa com Rondônia. Foi atingido por disparos em Vista Alegre do Abunã, um distrito de Porto Velho, e levado ao hospital de Extrema, também na capital, onde morreu.

O processo de investigação correu aos moldes do sistema judicial local. Ozias Vicente, um rapaz apontado como o autor do crime, foi preso, mas, meses depois, sem receber acusação formal do Ministério Público, acabou libertado pelo juiz José Gonçalves da Silva Filho. Não se completou um mês até que ele fosse morto, em janeiro de 2012. “Isso é queima de arquivo. Está claro. A gente não pode falar sem ter prova, mas a gente tem certeza de onde saiu. Se a Justiça quiser ela vai descobrir”, protesta o filho da vítima.

Ocorre que a Justiça não quis. Morto Vicente, determinou-se o arquivamento do caso da morte de Adelino, já que supostamente o responsável pelo assassinato não tinha mais como pagar uma eventual pena. Procurado para comentar a possibilidade de que mandantes fiquem impunes, o juiz não quis conceder entrevista.

Agora, Claudemir espera que surja algo em que possa se apegar para se manter forte e vivo à espera da liberdade. “Para mim ainda há esperança. Ainda existe alguém que queira justiça e que tenha coragem de levantar essa questão.”

Uma série de conversas nos últimos meses fez ressurgir a possibilidade de aprovação da anistia política. João Paulo argumenta no projeto que “não houve ao longo das mais de 10.000 páginas que informam os autos judiciais nenhuma preocupação em se chegar à verdade real, de trazer à baila a realidade dos fatos e a forma como efetivamente ocorreram as ações deletérias adotadas pelos Policiais Militares e por alguns particulares no massacre aos posseiros”.

Além de João Paulo Cunha, os deputados Anselmo de Jesus (PT-RO) e Padre Ton (PT-RO) passaram a atuar em torno da proposta. Mas a oposição da bancada ruralista se mostra como o maior entrave à aprovação. O maior grupo do Congresso, capaz de impor seguidas derrotas ao Palácio do Planalto, deu dois recados de como vai atuar. No primeiro, apresentou um pedido de vistas coletiva. No segundo, o deputado Moreira Mendes (PSD-RO) apresentou voto em separado na CCJ afirmando que a aprovação da matéria seria uma afronta à decisão do Poder Judiciário.

Na visão do parlamentar, o júri condenou apenas os que “comprovadamente participaram deste ato de barbárie” ao ferir o direito à propriedade privada e provocar danos à produção agrícola brasileira. “Aprovação deste projeto é incentivar a prática de invasão de terras em todo o país, principalmente abrir precedente para que outros membros de ‘Movimentos’ que se unem para invadirem terras pratiquem crimes e depois utilizem desta respeitável Casa de Lei para que sejam anistiados. Ninguém está acima da Lei”, afirmou, no voto em separado.

A leitura da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é outra. Na visão da entidade, integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA), o julgamento do caso de Corumbiara está repleto de ilegalidades. A começar pela mais flagrante: toda a acusação é baseada no relatório elaborado pela Polícia Militar, diretamente envolvida no crime, versão que foi admitida por um dos promotores do caso, Elício de Almeida e Silva, em entrevista à RBA. Elício afirmou ainda ter sofrido assédio de deputados federais e do então ministro das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, possivelmente preocupado com a repercussão internacional do episódio.

Naquele momento, a CIDH entendeu que não podia levar o caso a julgamento porque crime e condenação haviam ocorrido antes da entrada no Brasil no sistema interamericano, em 1998, mas deixou a determinação ao Estado de que promovesse uma apuração correta do caso. “Proceder a uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos, por entidades que não sejam militares, que determine e puna a responsabilidade de todos os autores materiais e intelectuais, tanto militares como civis”, assinalou o relatório final, ignorado pelo governo federal e pelo Poder Judiciário. Resta saber se no Congresso prevalecerá a visão da Polícia Militar ou a da OEA.