impunidade

No Rio, 80% das mortes por intervenção policial não são investigadas

Relatório divulgado pela Anistia Internacional revela omissão do Ministério Público, impunidade e estratégias utilizadas pelos agentes públicos para encobrir execuções

Jose Lucena/Futura Press/Folhapress

Para a Anistia, violência policial no Rio de Janeiro é legitimada pela omissão do Ministério Público

São Paulo – Relatório divulgado hoje (3) pela Anistia Internacional revela que 80% dos casos de homicídio praticados por policiais militares em serviço na cidade do Rio de Janeiro – autos de resistência – não têm suas investigações concluídas. De 220 investigações abertas em 2011, relativas a 283 homicídios, apenas um caso teve denúncia apresentada à Justiça pelo Ministério Público. Até abril de 2015, quando o estudo foi concluído, 183 investigações continuavam em aberto. Para a Anistia, a falta de investigação e a impunidade nesses casos dá a entender que estas mortes são permitidas e toleradas pelas autoridades.

“A falta de investigação dos casos de homicídios envolvendo policiais alimenta a impunidade e o ciclo de violência. O estado, através das autoridades da Segurança Pública e do Comando Geral da Polícia Militar, e o Ministério Público, responsável pelo controle externo da atividade policial, não podem ser tolerantes com essa prática”, alertou o diretor executivo da Anistia, Átila Roque.

Entre 2010 e 2014, foram registrados 1.519 autos de resistência no Rio de Janeiro. O número representa, aproximadamente, 16% de todos os homicídios registrados na cidade do Rio de Janeiro nos últimos cinco anos. A entidade destaca que a maior parte ocorreu em regiões pobres da capital, vitimando, principalmente, negros (79%) e jovens – 75% dos assassinados tinham idade entre 15 e 29 anos. O índice é semelhante ao revelado pelo Mapa da Violência, segundo o qual, das 56 mil vítimas de homicídios em 2012, 77% eram negras e 53% tinham entre 15 e 29 anos.

A anistia propôs uma série de recomendações, cobrando principalmente que o Ministério Público fluminense deixe de ser omisso e cumpra suas atribuições constitucionais de controle externo das polícias.

Pediu também que o governo do Rio de Janeiro garanta que sejam realizadas investigações “completas, independentes, céleres e imparciais de todos os casos de homicídio decorrentes de intervenção policial”, que se fortaleça o Programa de Proteção a Testemunhas e Vítimas Ameaçadas (Provita) e o Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos no estado, e que se ofereça apoio psicossocial e indenização justa a todas as vítimas e familiares de vítimas de violência policial.

Ao governo federal a entidade reivindicou que seja implementado um programa nacional voltado à redução dos índices de homicídios decorrentes de intervenção policial. E que o Congresso Nacional aprove o Projeto de Lei 4.471/2012, que acaba com os autos de resistência e cria procedimentos para garantir a investigação adequada de homicídios ocorridos em ações com envolvimento de agentes do estado.

Estratégias

A Anistia realizou ainda uma série de entrevistas, sem identificação dos depoentes, que ajudam a elucidar o modus operandi das execuções no Rio de Janeiro. O primeiro deles é o “pingue-pongue” entre o Ministério Público e a Polícia Civil. “A delegacia remete o inquérito ao Ministério Público, que depois o manda de volta à delegacia com novas solicitações de informações, e assim sucessivamente durante anos, sem concluí-lo – faz com que a investigação não termine e permaneça em um ‘limbo’”.

Segundo um pesquisador da área de segurança pública, “esses 183 casos são o ‘limbo’ – não tem como pedir o arquivamento e nem transformar em denúncia. Não dá a responsabilidade a ninguém. O que vocês provavelmente vão encontrar neste ‘pingue-pongue’ é que não tem testemunha e nem local do crime. Homicídio se esclarece nas 48 horas iniciais. Depois disso, vai ficando cada vez mais complicado. E a Polícia sabe disso. O ‘pingue-pongue’ não vai dar em nada. Vai virar arquivamento. É só questão de tempo”.

Um delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, também em entrevista à Anistia, se disse surpreso com essa quantidade de autos de resistência em aberto, porque são casos com autoria conhecida. Para ele, se passados quatro anos não houver conclusão dos inquéritos é porque provavelmente a morte não foi provocada em legítima defesa.

Um defensor público, também não identificado, explicou em entrevista: “Claramente, se não tiver cobrança, a investigação não anda porque há uma tendência corporativista muito forte tanto por parte da Polícia quanto do Ministério Público”. Segundo ele: “Caberia ao Ministério Público, não só como fiscal da atividade policial, mas também como titular da ação penal – ou seja, aquele que oferece a denúncia –, apreciar com mais cautela os ‘autos de resistência’ e não permitir que eles fiquem indefinidamente parados ou nas prateleiras das delegacias ou do próprio órgão”.

Outro “sistema” detalhado pelos entrevistados é chamado de “Troia”. Tanto moradores de Acari quanto membros da Polícia Civil o descreveram como uma estratégia dos policiais militares nas favelas da cidade, por meio da qual pessoas são executadas sem receber nenhuma ordem de prisão ou sem oferecer perigo para a vida do policial.

“Policiais ficam escondidos na casa de algum morador e armam uma emboscada para executar uma pessoa específica. Muitas vezes, os agentes entram na favela durante uma operação e se escondem por muitas horas, mesmo depois da incursão ter acabado. Em alguns casos, os policiais chamam o “caveirão” para buscá-los e retirá-los do local. Essa é uma tática muito conhecida e utilizada, especialmente pela Polícia Militar, cujo nome é inspirado na história do ‘Cavalo de Troia’”, descreve a Anistia.

Um policial civil explicou para a Anistia Internacional um exemplo de “Troia”: “Um grande grupo de policiais, com várias viaturas, entra na favela fazendo muito barulho e depois sai. Só que dentro da favela ficam alguns policiais escondidos em alguma casa esperando os traficantes aparecerem. É uma tática para execução. Ninguém está querendo prender ninguém. Não dá nem pra chamar isso de tática, né? Mas a lógica, qual é? Quando os traficantes aparecem, os policiais que estão escondidos os executam”.

Passado e presente

Como foco para a pesquisa, a Anistia escolheu a Área Integrada de Segurança Pública (Aisp) 41, região abrangida pelo 41° Batalhão da Polícia Militar. Nesse local estão os bairros de Acari, Barros Filho, Costa Barros, Parque Colúmbia e Pavuna. De acordo com os dados obtidos no Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, esta foi a área que registrou o maior número de homicídios decorrentes de intervenção policial, em todo o estado, em 2014. Dos 580 casos, 68 foram registrados ali.

A Anistia destacou a favela de Acari, na região norte da cidade, onde vivem 22 mil pessoas. O local é emblemático para movimentos de direitos humanos por conta da Chacina de Acari, ocorrida em 1990. Em julho daquele ano 11 jovens – sendo sete menores de idade – foram retirados de um sítio por homens armados que se identificaram como policiais e desapareceram. Passados 25 anos, o crime continua impune. E a violência policial e a impunidade seguem sendo cotidianas na vida dos moradores da favela, segundo relata a Anistia.

Em 2014, foram dez mortes decorrentes de intervenção policial em Acari. Nove delas tinham fortes indícios de execução, segundo a Anistia. O décimo caso não tinha elementos suficientes para concluir a investigação.

A Anistia cita ainda o caso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), criadas com o objetivo oficial de modificar a relação da polícia com as comunidades, mas que acumulam denúncias de violência e execuções. O caso mais emblemático é o do pedreiro Amarildo de Souza, levado por policiais da UPP da Rocinha, na zona sul da cidade, em julho de 2013. Amarildo foi torturado, morto e teve o corpo ocultado. As investigações indicaram que mais de 20 policiais, inclusive o comandante da UPP, estão envolvidos no caso.

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