entrevista

Para jurista, maior dificuldade é enfrentar Estado repressor dentro da democracia

Signatário do manifesto contra a repressão das manifestações avalia que existe uma articulação entre os poderes para conter os movimentos sociais e criminalizar as lutas

© passapalavra.info /reprodução

Forças repressoras se apoderam do discurso da democracia para criminalizar lutas sociais legitimas pela Constituição

São Paulo – Renan Quinalha, advogado militante de direitos humanos e colaborador da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, defende que é preciso cuidado com o momento atual de repressão contra as mobilizações sociais. Signatário do manifesto de juristas contra as práticas ilegais de repressão e criminalização de ativistas, divulgado na última quarta-feira (16), ele avalia que as instituições – governos, polícias, Judiciário, Ministério Público – têm se articulado na ação repressiva, apoiando e auxiliando arbitrariedades.

“Se fosse uma ditadura seria muito fácil fazer uma denúncia disso. O problema é que a gente vive em uma democracia. É isso que a gente tem e, se a gente quiser radicalizar, ampliar os limites, a gente pode mudar isso para uma outra coisa. O problema é que a democracia já não é a defesa a ser feita. O discurso da democracia está na boca deles, está na boca dos governos, das forças policiais, do judiciário. Ébo o discurso de defesa das liberdades fundamentais, dos direitos humanos, isso tudo é instrumental da repressão.”

Entre os pontos principais do documento estão a imediata libertação de Fábio Hideki e Rafael Marques – presos durante protesto contra a Copa do Mundo, em São Paulo, em 23 de junho –, o acatamento do direito ao silêncio dos 22 militantes do Movimento Passe Livre (MPL) e o arquivamento do inquérito policial nº 1 de 2013.

Quinalha considera que, desde as manifestações de junho do ano passado, houve um recrudescimento da violência do Estado contra os manifestantes. Marques e Hideki foram presos sob alegação de serem adeptos da tática black bloc. Porém, segundo testemunhas e vídeos divulgados nas redes sociais, os militantes não possuíam nenhum artefato ilegal. Os dois continuam presos. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou-lhes pedido de habeas corpus, no dia 3.

Instaurado em outubro do ano passado, com o objetivo de investigar todos os casos que envolvem protestos na capital, o inquérito nº 1/2013, do Departamento de Investigações Criminais (Deic), tem sido amplamente questionado sobre sua legalidade.

Segundo o jurista, são várias as ilegalidades percebidas. Uma delas é que não há qualquer crime sendo investigado no inquérito e a maior parte dos ‘suspeitos’ foi presa sem qualquer acusação formal. Além disso, o trabalho estaria sendo conduzido “a partir de um rol de perguntas sobre a vida política das pessoas intimadas e chegou-se ao absurdo de proceder à busca e apreensão de livros”.

Confira a entrevista completa.

O senhor analisa que existe alguma relação dessas prisões em São Paulo, com as prisões que houve no Rio, as ações contra a greve dos metroviários paulistas? É um movimento orquestrado?

Eu acho que sim, é uma onda de repressão em vários sentidos e que ligam esses fatos todos. A Copa intensificou esse processo, mas essa onda é algo que já vinha sendo praticado em outras esferas de exceção. Ela se torna mais visível porque começa a atingir um público com maior capacidade de mobilização, de denúncia. Mas essas arbitrariedades e prisões sem respaldo legal, essa falta de controle das instituições sobre esses agentes que cuidam da segurança pública, isso já era regra em muitos locais do Brasil

Por exemplo?

Nas periferias, contra populações marginalizadas, indígenas, populações ribeirinhas, negros e pobres das grandes cidades, já eram processos que digamos que já eram uma realidade antes da organização da Copa do Mundo. E começou a tomar uma dimensão maior quando passou a atingir esses setores mais visíveis, porque essas contradições ficaram mais claras e esses abusos mais evidentes.

Quando você prende um advogado que tenta ultrapassar uma barreira para tentar falar com um cliente e garantir o direito de defesa dele em uma reintegração de um imóvel (Benedito Barbosa, advogado da Central de Movimentos Populares), a entidade de classes da advocacia entra em cena e começa a ter um novo ator que faz essa denúncia.

causa operária tv / reprodução
O advogado e ativista Renan Quinalha: exercício da democracia está nos movimentos sociais

 

Repercute muito mais, quando outras instituições começam a atuar com mais proximidade, como defensoria pública, demonstrando que está havendo abusos, que estão prendendo arbitrariamente, se começa a discutir mais isso.

A ausência de identificação de policias em várias manifestações, uma certa lógica de punição e prisão preventiva, que criminaliza não a conduta da pessoa, o que ela fez, e sim o que poderia de fazer. Ou detenções com base em tipos penais em que há muito abuso, como a figura do desacato, que qualquer autoridade pode criminalizar alguém.

E isso tem um respaldo das mais altas esferas de governo, não é uma iniciativa localizada de meia dúzia de agentes públicos na base da repressão, mas é efetivamente uma estrutura que está montada. Isso tem que ser vistos em conjunto para a gente começar a entender a articulação entre eles, a cota de responsabilidade do governo estadual, do governo municipal e do governo federal sobre isso. Tanto do ponto de vista institucional, quanto do ponto de vista político. Se pode dizer que o governo federal não é responsável pelas policiais estaduais, mas o Ministério da Justiça tem dado sinal verde.

Nós temos visto inclusive uma cautela em se falar disso por parte do governo federal. É clara a separação entre as instituições, mas não há critica.

Exatamente. Não há nem silêncio, há declarações do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no sentido de respaldar isso e ratificar essas práticas de violência e repressão. O governo federal não é só conivente, ele tem uma dose de cumplicidade, porque não é algo contingente, não é algo só da polícia de São Paulo e do Rio de Janeiro, ainda que também seja dessas polícias. Esses estados têm uma dose importante de responsabilidade. Mas não é um fato isolado, está acontecendo em vários estados brasileiros. A polícia está agindo de um mesmo modo, então há uma coordenação aí, e essa coordenação passa por todas as instâncias do governo.

Os governos estão temendo esse momento de mobilização da sociedade? Esse momento de grandes questionamentos, de grandes mobilizações sociais?

É difícil fazer uma análise das motivações ainda sem um dado empírico, sem um distanciamento histórico para compreender essas variáveis todas. Mas acho que sim. Um dos fatores, é um reflexo das grades manifestações de junho de 2013, que levaram a uma desestabilização de diversos setores do sistema político brasileiro. E que fez com que eles agissem não do jeito que a gente esperava, atendendo as reivindicações que foram colocadas, que era efetivamente do ponto de vista de radicalização da democracia brasileira.

O que se viu, depois de tímidas tentativas de reformas positivais, digamos assim, foi a apropriação de um discurso sobre a razão de Estado, de algo maior que justifique a cassação dos direitos, que foi a realização da Copa do Mundo. Com isso se viu o avanço dessas políticas repressivas para desmantelar todos os tipos de organização que estavam atuando, pressionando a democracia brasileira para além de seus livres direitos.

Isso não são só os black blocks, os vândalos, baderneiros, ou qualquer coisa do tipo, mas são movimentos sociais, movimentos populares, organizados há muito tempo. E que têm espaço na cena pública brasileira, na política brasileira e que estão sofrendo também com isso. Até advogados que tentam fazer a defesa dos seus clientes não estão conseguindo ter as prerrogativas respeitadas para conseguir fazer valer o mínimo do mínimo do que se pode chamar de um Estado de direito.

O que pode ser feito quando você tem toda uma estrutura atuando assim: a polícia prende, a Justiça mantém e o Ministério da Justiça respalda?

Sem dúvida há uma articulação e gera até uma sinergia nessa repressão, uma convergência de todos esses órgãos. E esse é o grande risco, da democracia hoje, porque o mínimo de uma democracia, de um Estado de direito é que as instituições possam controlar umas as outras. E o abuso de uma possa ser ponderado ou limitado pela outra.

Primeiro, o Ministério Público deveria controlar as forças policiais e não controla. Pelo contrário. Entra nessa onda e tenta criminalizar os movimentos sociais oferecendo as denúncias. O sistema de justiça, em vez de controlar essa ação infundada do Ministério Público e as prisões arbitrárias da polícia, acaba também referendando. Há uma certa coordenação, apesar de uma suposta independência desses órgãos em relação ao governo, conjugam-se as ações de um órgão para o outro no sentido de avançar na repressão.

Um respalda o outro nas inciativas que o outro toma. Isso acaba dando uma segurança para que esses procedimentos de repressão avancem. Por isso que a gente tem visto que há uma política de Estado de repressão que não é contingente. Não é só a polícia fazendo isso. Não é só o sistema de justiça fazendo isso. Há de fato uma articulação entre esses diferentes órgãos para consumar essa desorganização da sociedade civil. É isso que a gente está vendo e isso é um grande risco para a democracia. É uma tentativa de desestruturação de grupos que atuam politicamente, que conseguem tensionar a democracia brasileira.

E nesse caso, manter a organização e denunciar repetidamente esses fatos pode ser o caminho para enfrentar isso em um primeiro momento?

Sim. É fazer a denúncia, nomear, dar cota de responsabilidade, apontando quem são os culpados e quem são os cúmplices dessa política que está acontecendo. Há diferentes níveis de responsabilidade e a gente precisa começar a dizer mais claramente. Porque isso respinga também nos partidos políticos, nas diferentes esferas de governo. E esses movimentos sociais têm capacidade de pressão sobre esses setores, ainda que marginalmente. Essa é a primeira grande lição que a mobilização dos direitos humanos ensinava. E tentar fazer com que, usando essas novas tecnologias também, isso repercuta o máximo possível, inclusive no exterior.

Percebemos que tem havido certo “escancaramento” da violência. Parece não haver mais pudor. Há muitas imagens, muita agressão que não fica mais escondida.

Exato. É curioso porque isso está atingindo jornalistas, advogados, setores que são privilegiados. A atuação repressiva das forças policiais está avançando para esses setores. E esses setores têm de reagir, porque são setores mais articulados e com uma possibilidade de denúncia também por outros caminhos. A posição da OAB ainda é muito tímida em relação a isso.

Mas é uma entidade que tem uma capacidade de pressão muito forte. E é óbvio que não faz porque a OAB também não é muito preocupada com advogados de direitos humanos e movimentos sociais. As associações também de classe de jornalismo precisam começar a denunciar esse tipo de situação e se engajar mais efetivamente. Se esses setores começam a se alinhar aos movimentos sociais, eu acredito que a gente consegue pelo menos bloquear essa tendência que está em um ritmo muito intenso.

O senhor falou em ameaça à democracia, mas ao mesmo tempo não me parece a mesma ameaça que a gente teve no golpe de 1964, com um grupo que rompe a Constituição e toma o poder. Hoje a gente tem todos os grupos políticos meio que fazendo parte disso, é como se fosse uma ameaça à democracia dentro da democracia?

Exatamente. Não é mais necessário romper com a democracia para se instituir um estado de exceção e de violência. Esses setores já entenderam isso. Seria muito leviano e equivocado dizer que a gente está vivendo uma ditadura ou que a gente está se aproximando de uma ditadura. Não, a gente está vivendo uma democracia, mas em uma democracia com zonas de exceção cada vez mais ampliadas.

E é justamente escondidas debaixo do discurso democrático, das instituições democráticas, é que essas violências começam a se operar com auto grau de legitimidade. E esse é o grande risco. Se fosse uma ditadura seria muito fácil fazer uma denúncia disso. O problema é que a gente vive em uma democracia. É isso que a gente tem e se a gente quiser radicalizar, ampliar os limites, a gente pode mudar isso para uma outra coisa. O problema é que a democracia já não é a defesa a ser feita. O discurso da democracia está na boca deles, está na boca dos governos, das forças policiais, do judiciário. É o discurso de defesa das liberdades fundamentais, dos direitos humanos, isso tudo é instrumental da repressão.

A gente tem que aprender a sofisticar as nossas críticas e nossas análises, para conseguir orientar melhor a ação política. Se a gente começar a dizer que a gente vive uma ditadura, como certos setores fazem e eu discordo, não conseguimos dar conta da complexidade do que a gente está vivendo. A gente vive em uma democracia. Uma democracia com todas as letras. E o problema é justamente esse.

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