direito a manifestação

Juristas divulgam manifesto contra repressão e criminalização das lutas sociais

Signatários do documento ouvidos pela RBA defendem que a repressão vem se estruturando entre as instituições e que não se trata de voltar à ditadura, mas de enfrentar 'democracia repressora'

Mário Ângelo/Sigmapress/Folhapress

Cavalaria, armaduras, Tropa de Choque, bombas e balas de borracha estão cada vez mais presentes nos protestos

São Paulo – Em protesto contra o aumento da repressão aos movimentos sociais, marcado pelo impedimento de manifestações de rua e prisões ilegais, 92 juristas lançaram na quarta-feira (16) manifesto pela cessação da escalada de criminalização dos protestos. Entre os pontos do documento estão a imediata libertação de Fábio Hideki e Rafael Marques – ativistas presos durante protesto contra a Copa, em São Paulo, em 23 de junho –, o acatamento do direito ao silêncio dos 22 militantes do Movimento Passe Livre (MPL) e o arquivamento do inquérito policial nº 1/2013.

Desde as manifestações de junho do ano passado, houve um recrudescimento da violência do Estado contra os manifestantes, diferentemente do esperado, que seria o atendimento das reivindicações e a ampliação dos canais de diálogo entre os poderes da República e a sociedade.

“O que se viu, depois de tímidas tentativas de reformas positivais, digamos assim, é que se seguiu um discurso de uma razão de Estado, de algo maior que justifique a cassação dos direitos, que foi a realização da Copa do Mundo. Com isso, se viu o avanço dessas políticas repressivas para desmantelar todos os tipos de organização que estavam atuando, pressionando a democracia brasileira”, avaliou o advogado da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, Renan Quinalha, em entrevista à RBA que será publicada na íntegra amanhã (19).

Para ele, o processo de repressão está bem organizado e é preciso avaliar a cota de responsabilidade dos governos estaduais, municipais e federal sobre isso. “Não é uma iniciativa localizada, de meia dúzia de agentes públicos na base da repressão. É, efetivamente, uma estrutura que está montada. Isso tem que ser visto em conjunto para a gente começar a entender a articulação entre eles”, afirmou.

Hideki e Marques foram presos sob alegação de serem adeptos da tática black bloc. No caso de Hideki, de também portar artefatos explosivos. No entanto, segundo testemunhas e vídeos divulgados nas redes sociais, o militante não possuía nenhum tipo de bomba. Os dois seguem presos, já que o Superior Tribunal de Justiça negou no dia 3 passado pedido de habeas corpus para garantir suas liberdades.

O inquérito nº1/2013 foi instaurado em outubro passado, com o objetivo de investigar todos os casos que envolvem protestos na capital. Como parte desse trabalho, 22 militantes do MPL foram intimados a depor no Departamento de Investigações Criminais (Deic). O Passe Livre alegou direito de se manter em silêncio, e o secretário paulista de Segurança Pública, Fernando Grella Vieira, afirmou que poderia levar os ativistas à força para depor.

Segundo o manifesto, são várias as ilegalidades percebidas nesse inquérito. A principal é que o trabalho está orientado por um “explícito e inconstitucional direito penal do autor”. “Ele é conduzido a partir de um rol de perguntas sobre a vida política das pessoas intimadas e chegou-se ao absurdo de proceder à busca e apreensão de livros na casa de alguns ‘investigados’”.

Além disso, não há qualquer crime sendo investigado no inquérito e a maior parte dos investigados foi presa sem qualquer acusação formal. Os juristas ainda criticam a infiltração de agentes em manifestações, sem autorização judicial.

“Especificamente em São Paulo, lugar em que primeiro sopraram os bem-vindos ares de junho, causa extrema indignação o aparato que se organizou desde a instauração do famigerado inquérito policial 1 de 2013 no Deic”, diz um trecho do documento.

Outros casos que ilustram as ações criticadas pelos juristas foram os cercos a manifestantes realizados pela Polícia Militar em São Paulo. A primeira vez foi em 22 de fevereiro deste ano, quando a PM cercou um grupo na rua Xavier de Toledo, no centro da capital, durante ato contra a Copa.

Depois disso, a polícia impediu a realização de uma manifestação na Avenida Paulista contra as prisões de Hideki e Marques. A PM encurralou cerca de 300 ativistas no vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e impediu a saída da marcha porque não foi apresentada a liderança do ato.

Esse tipo de ação se repetiu outras duas vezes, pelo menos. Uma, em outro ato-debate pela libertação dos dois presos, na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo. Houve forte repressão com a participação da Tropa de Choque e da Cavalaria. Houve o uso de bombas de efeito moral e a detenção, para averiguação, de seis manifestantes.

A outra foi durante um ato-debate do Movimento Passe Livre, de questionamento sobre a legalidade do Inquérito nº 1/2013, em que a Tropa de Choque e a Cavalaria também estiveram presentes e cercaram as pessoas, na Praça da Sé, ao lado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Nesse dia, houve praticamente a paridade entre o número de policiais e de manifestantes.

Além disso, a polícia mudou a tarjeta de identificação utilizada nos protestos. A comum, com a patente e um dos nomes do policial, tem sido substituída por um código alfanumérico de dez dígitos, o que dificulta a identificação dos agentes.

Outro caso que chamou atenção dos juristas foi a prisão, no último dia 12, de 19 pessoas que participaram de manifestações, sob alegação de que poderiam cometer crimes na final da Copa, no dia 13. Outros nove militantes que não foram encontrados passaram a ser considerados foragidos. A ação foi autorizada pela Justiça carioca.

Hoje (18), a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro libertou os últimos cinco detidos. Os demais foram soltos até a última quarta-feira (16).

Na manhã desta sexta-feira, a organização não governamental Justiça Global enviou quatro ofícios a Brasília (DF) solicitando providências em relação às prisões de manifestantes no último dia 12. A ONG ressalta que “o segredo de justiça sob o qual o inquérito e o processo vêm tramitando impedem o acesso à informação e a comprovação das ilegalidades destas mesmas prisões”. O documento foi enviado ao Ministério da Justiça, Secretaria de Direitos Humanos, Congresso Nacional, além do Conselho Nacional de Justiça.

Para o militante da rede de advogados populares e ex-guerrilheiro Aton Fon Filho, as ações violentas e arbitrárias estão se alastrando para outros setores, mas não são novidades. “Não estamos tratando de algo que surgiu agora. Essas ações sempre existiram contra trabalhadores rurais e população urbana pobre, por exemplo”, afirmou.

No caso das prisões para evitar manifestações na final da Copa, Aton avalia que uma constatação do agravamento da situação é o papel desempenhado pela Justiça. “Eu entendo a polícia pedir a prisão temporária, pela atuação geral que alguns delegados têm. Agora, me surpreende a Justiça aceitar esse pedido”, disse.

Aton, que militou contra a ditadura (1964-1985), avalia que o momento que vivemos é bem diferente daquela época. “Naquele momento era prender, torturar, matar e sumir. Nosso momento é diferente. Estamos aqui falando sobre isso. Divulgamos manifesto. Movimentos protestam contra isso. O que temos é uma democracia com características repressoras”, defendeu Aton.

Quinalha concorda: “A gente está vivendo uma democracia, mas uma democracia com zonas de exceção cada vez mais ampliadas. E é justamente escondidas debaixo do discurso democrático, das instituições democráticas, que essas violências começam a operar com auto grau de legitimidade. E esse é o grande risco”, afirmou.

Aton, no entanto, está otimista sobre o momento. Para ele, as ações têm dado visibilidade para a repressão do Estado, que é praticada há anos. “Toda essa discussão, esse levante contra a ação de criminalização dos movimentos, cria melhores condições de enfrentar e mudar essa situação. Ainda estamos no início”, concluiu.

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