Vítimas de Junho

Acusado por tráfico, manifestante fica mais de três meses preso em Campo Grande

Dudu caiu nas mãos da justiça em 21 de junho, durante protestos no MS. Após três tentativas, advogados finalmente conseguem habeas corpus. Guardas teriam forjado flagrante

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Dudu é conhecido na cidade por sua militância cultural. Foi candidato a vereador pelo PPS

São Paulo – Eduardo Miranda Martins sempre quis viver do teatro, mas não pretende continuar atuando na peça que escreveram especialmente para que fosse protagonista. Tem sérias discordâncias com o roteiro. Elaborado pela Justiça do Mato Grosso do Sul em estreita colaboração com guardas municipais de Campo Grande, o texto tem sido encarado como tragédia, farsa, comédia ou epopeia, ou como seriado policial baseado em fatos reais.

O espetáculo começa nas ruas da capital sul-mato-grossense e, por enquanto, termina no Centro de Triagem Anízio Lima, um presídio provisório localizado sobre a BR-262, na parte oeste da cidade. É para lá que são levados os detentos sem sentença, os suspeitos que, como Eduardo, ainda aguardam a martelada definitiva do juiz. Lá, ele divide cela com outros 30 presos, acusados dos mais variados delitos. É onde vive há mais de três meses.

Conhecido nos palcos da vida como Dudu, o ator de 28 anos se sentia muito à vontade marchando ao lado de uma multidão pelas ruas de Campo Grande em 21 de junho. Estava feliz: tradicionalmente passiva, a cidade atravessava seu segundo dia consecutivo de manifestações. Chovia, e apesar do mau tempo, para surpresa geral, cerca de 5 mil pessoas saíram de suas casas para exigir um país melhor. No dia anterior, haviam sido mais de 20 mil, algo inédito na história do estado.

Militante do movimento negro, figura carimbada entre skatistas, bandas e agentes culturais de Campo Grande, Dudu há tempos estava envolvido com os rumos políticos da capital. É um daqueles cidadãos que se pode chamar casca de ferida, brigão, encrenqueiro. Inconformado. Frequentemente se metia em discussões, saraus, manifestações, vigílias e notícias de jornal. No ano passado, lançou-se candidato a vereador pelo PPS. Conseguiu 185 votos – pouco, mas não o suficiente para amainar seu apetite para a peleja.

Dudu era um dos poucos a ficar no encalço dos políticos numa cidade sem muito apreço pela (ou com medo da) arena pública. Na maioria das vezes, suas brigas foram em vão. De tanto esmurrar ponta de faca, porém, Dudu foi desenvolvendo uma hipótese: a panela de pressão campo-grandense logo estouraria. No dia em que milhares saíram às ruas da capital, ele não ficou tão chocado: ficou extasiado. Sabia que um dia seus conterrâneos acordariam. Naquela sexta-feira, sua rebeldia estava acompanhada. Finalmente as pessoas começavam a protestar.

A empolgação, porém, durou bem pouco: transformou-se em grades. Na cadeia, Dudu tem sido abalado por uma insistente sensação de injustiça. Não consegue aceitar o que considera ser uma grande armação de seus adversários para calá-lo e tirá-lo de circulação. Não raro é acometido por crises depressivas. E já ensaiou suicídio com veneno de rato, tentativa providencialmente frustrada por companheiros de prisão. Algumas queimaduras na boca ficaram como lembrança de sua atitude desesperada.

Na peça protagonizada por Dudu em Campo Grande, a transição entre as ruas e o presídio não se deu, como de costume, por um abrir e fechar de cortinas: foi o uso da força pública que mudou o cenário do ator. O roteiro completo do espetáculo, ainda inconcluso, está disponível para consulta nos arquivos do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. E o primeiro ato tem início com uma detenção irregular.

Testemunha

“A gente estava passando em frente à prefeitura, e havia uma corrente de guardas municipais protegendo o prédio”, testemunha Carolina Emboava, que estava ao lado de Dudu quando a história começou. “Vimos pessoas vestidas normalmente saírem de lá e virem em nossa direção. Sabíamos que eram guardas, mas continuamos andando tranquilos. Perto do ponto de ônibus, uma pessoa que fingia esperar a condução colou no Dudu e derrubou ele no chão. Vieram mais uns quatro, todos à paisana, e pularam em cima dele.”

A jovem ficou sem entender o que estava acontecendo e se preparou para receber, também ela, a agressão dos guardas. “Esperei que me pegassem: parei e coloquei as mãos para cima”, relata. “Foi quando chegou outro cara à paisana e ordenou que eu fosse embora. Eu retruquei, dizendo que não iria, que estava numa manifestação e que continuaria me manifestando. Ele respondeu: ‘Vai embora! A manifestação já acabou, agora só tem vagabundo.’”

Aos 22 anos, Carolina, que prefere se apresentar como Carol, estuda Direito na Universidade Anhanguera de Campo Grande e, durante o dia, trabalha como recepcionista numa construtora. É também atriz amadora. Não se considera precisamente uma vagabunda, como sugeria o guarda. Tampouco enxerga Dudu como tal. Os dois se conheceram em 2008 durante um curso de teatro no Pontão de Cultura Guaicuru, coordenado pela diretora Andrea Freire. Chegaram a contracenar numa esquete. No ano seguinte, estiveram juntos em outra oficina. Desde então vinham se encontrando pela cidade devido ao gosto em comum que cultivam pelas artes cênicas.

“Dudu era um aluno estrela, tinha mais experiência e ajudava bastante a gente. Se dedicava muito ao curso”, conta a estudante. “Quando a professora faltava, era ele quem dava as aulas.” O cabelo loiro, longo e liso e a pele branca de Carol contrastam radicalmente com a aparência meio hippie meio maloqueira de Dudu. Tanto que, ela conta, se acostumou a aguentar as zoeiras do amigo. “Sempre me chamava de patricinha e dizia que eu iria trabalhar na Malhação”, lembra. “Mas era tudo brincadeira. Nos dávamos muito bem. É um cara legal.”

Por tudo isso, Carol quis insistir com os guardas que se amontoavam sobre seu amigo: argumentou que a maioria dos manifestantes trabalha e veio para as ruas depois do expediente. Era o caso deles. Consequentemente, explicou que não havia “só vagabundo” no protesto e que as pessoas estavam apenas querendo mudar o Brasil – o que não é crime. Em troca, recebeu outra resposta ameaçadora, do mesmo guarda: “Eu falei pra você ir embora!”.

Ela não foi, não imediatamente, porque queria ver aonde estavam levando Dudu. Olhos nos olhos, veio o ultimato da autoridade: “Vai embora, já falei!” Carol ficou sem saber o que fazer, e com medo, enquanto os homens à paisana conduziam seu amigo para atrás da linha de guardas que protegia a prefeitura. Só depois de se certificar do que estava acontecendo é que deixou o local, atendendo ao apelo de outros manifestantes que só então chegavam por ali e lhe ofereciam companhia.

“Pareceu que foi tudo bem planejado para agarrar o Dudu”, acredita, “senão teriam me pegado também. Se estivessem apenas prendendo as pessoas que participavam da manifestação, eu também teria sido detida: também estava na rua, e estava caminhando ao lado dele. Poderia inclusive receber as mesmas acusações”.

O episódio ocorreu por volta das 21h. Dudu ficaria desaparecido por cerca de três horas antes de ser apresentado à Polícia Civil – o que só ocorreria depois da meia-noite. Prova disso é que o boletim de ocorrência lavrado pela escrivã da Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário, no centro de Campo Grande, para onde o ator foi levado, traz a data do dia seguinte. E o depoimento dos guardas que conduziram o ator ao distrito policial foi registrado perto das 2h da manhã. Durante o longo intervalo entre sua prisão e sua entrada na delegacia, portanto, Dudu permaneceu sob poder dos homens da Guarda Municipal.

Se o primeiro ato teve a participação especial de Carolina Emboava, ou ao menos pôde contar com seu testemunho, na segunda parte da história os agentes do Estado – guardas, policiais, promotores e juízes – tomam a pena para si e escrevem tudo sozinhos. E elencam seus próprios atores para contracenar com o protagonista.

Autos

Diante da delegada, Dudu recebeu voz de prisão por dano qualificado ao patrimônio público e tráfico de drogas. Os guardas municipais que o detiveram em frente à prefeitura dão fé de que Dudu jogou pedras contra o prédio da Câmara dos Vereadores de Campo Grande. Pouco antes de sua prisão, um grupo de manifestantes tentara invadir o edifício. O ator teria participado do levante e, mais, incitara a turba a arremeter contra as instalações do legislativo municipal.

Os guardas não conseguiram, sozinhos, conter a multidão furiosa. Tiveram de chamar a tropa de choque da PM. Os policiais atenderam prontamente e dispersaram a multidão com bombas e cassetetes. No final, a porta de vidro da Câmara acabou estilhaçada e a grade de proteção do prédio, amassada. O grupo quebrara também a placa com a inscrição “Casa das Leis” que enfeitava a fachada do edifício.

Contudo, as consequências mais graves da ação recaíram sobre um ser humano: o guarda municipal Jefferson Clementino de Oliveira, de 29 anos, que defendia com seu corpo a inviolabilidade da Câmara, resultou ferido após levar uma pedrada na cabeça. Bem mais tarde, na delegacia, Jefferson diria que foi imediatamente socorrido por colega da corporação e levado ao hospital, onde recebeu quatro pontos no supercílio.

Acuada pela raiva coletiva, a Guarda Municipal não conseguira prender ninguém durante a tentativa de ocupação da Câmara. Depois que a tropa de choque dissipou os revoltados, porém, os membros da corporação, munidos de uma admirável memória fotográfica, saíram à caça dos responsáveis pela balbúrdia. Foi durante essa varredura pelo centro da cidade que, nos arredores da prefeitura, reconheceram Dudu como um dos agitadores. Carol, não.

Outros quatro rapazes e três menores de idade teriam naquela noite praticamente o mesmo destino do ator: foram todos abordados na rua enquanto caminhavam de volta para casa e presos por terem praticado atos vandalismo alguns minutos antes. Alguns alegam que pedras foram colocadas em suas mochilas como “evidência” do crime. A Guarda Municipal capturou-os separadamente, mas acabaram sendo levados todos juntos à Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário. E envolvidos no mesmo processo judicial.

Os registros policiais classificam os oito detidos como “comparsas”, apesar de apenas dois admitirem ser amigos: Nelison Rodrigues Cabral, de 20 anos, e Carlos Henrique Aguiar da Silva, 22. A dupla estava numa situação bastante parecida à de Dudu e Carol: passavam em frente à prefeitura quando guardas abordaram Carlos Henrique, dizendo que ele havia atirado pedras na Câmara.

Ao ver seu bróder sendo preso, Nelison protestou. Os agentes responderam “solicitando” que se retirasse do local. O jovem assentiu e atravessou a rua. Pegou o celular e começou a fazer uma ligação. Um guarda notou que Nelison telefonava para alguém, aproximou-se e lhe deu uma rasteira. No chão, o rapaz foi acusado, como seu amigo, de ter participado da arruaça.

Acusações

Em 19 de julho, o Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul ofereceu denúncia conjunta contra os cinco jovens pelo crime de dano ao patrimônio público mediante violência ou grave ameaça. Dudu e Carlos Henrique são apontados no inquérito como os incitadores do episódio: os guardas lembram de tê-los ouvido gritar “Vamos invadir! Vamos invadir!”.

Allan Bruno de Almeida Vasques, de 18 anos, responde também por lesão corporal dolosa. Ele teria sido responsável pela única vítima do episódio. Quem afirma é o próprio guarda ferido: Jefferson jura ter visto Allan lançando um objeto contra sua cabeça. Ainda assim, não desviou. Depois de ser socorrido, em vez de ir para casa, voltou imediatamente ao trabalho, com o supercílio semiaberto. Poucos minutos depois estava na prefeitura, onde reconheceu seu agressor.

Nelison é outro que carrega uma acusação individual: está sendo incriminado por porte de drogas para consumo pessoal, porque tinha um baseado no bolso quando foi pego pelos guardas.

Apontados como autores de crimes menos graves, todos passaram dois dias em cana e saíram após pagamento de fiança, definida pelo juiz de plantão em R$ 1.356,00 ou dois salários mínimos. No momento da prisão, a delegada responsável pelos flagrantes lhes havia arbitrado uma multa de oito salários mínimos – R$ 5.424,00 – cada um. Ao analisar a ocorrência, o magistrado reduziria o valor, exagerado, devido à natureza das infrações e à condição socioeconômica dos jovens.

Apenas Dudu não teve direito ao benefício. Isso porque, além de dano qualificado, também foi denunciado por tráfico ilícito de entorpecentes. Os guardas municipais que o mantiveram sob custódia durante três horas na prefeitura garantem ter encontrado na mochila do rapaz 36,9 gramas de cocaína, distribuídos em 23 papelotes, e quatro trouxinhas (ou 13,1 gramas) de maconha.

“Desta forma, restam evidenciadas a materialidade e autoria dos delitos”, conclui a promotora Luciana Schenk, quem, entre outros 1.800 processos sobre sua mesa, cuida da acusação contra Dudu e os demais presos na manifestação. No documento apresentado à Justiça, a representante do Ministério Público afirma que formou sua convicção quanto à culpabilidade dos jovens por meio da análise “do auto de prisão em flagrante, do termo de representação da vítima, do depoimento da vítima e das testemunhas”.

O segundo ato termina com a conclusão de que Dudu continuaria preso indefinidamente porque a acusação de tráfico de drogas não admite fiança – apenas hoje (30), na terceira tentativa, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul concedeu o habeas corpus a Dudu, que responderá ao processo em liberdade. Termina ainda com a teimosia das cortes sul-mato-grossenses em reconhecer a existência de outras versões sobre o episódio.

Fé pública

Todos os elementos da acusação estão baseados exclusivamente na história contada pelos guardas municipais à delegada de plantão na Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário de Campo Grande. Apenas seis testemunhas foram arroladas pelo Ministério Público no processo: todas elas são guardas. “Eu represento o Estado, e não posso colocar em dúvida a palavra dos representantes desse mesmo Estado”, explica a promotora Luciana Schenk. “Eles têm fé pública.”

Dois guardas prestaram depoimento no distrito policial: Everaldo Ponce Ojeda, de 32 anos, e Valmir Ferreira de Silva, 29. Suas declarações foram tomadas com dois minutos de diferença, à 01h46 e à 01h48 do dia 22 de junho, mas são idênticas. Isso mostra que, ou os guardas não foram ouvidos separadamente, como sugerem os documentos, ou a funcionária responsável por ouvi-los copiou e colou um só relato em duas declarações distintas.

Apesar de não ter nenhuma responsabilidade sobre a elaboração do mapa do Brasil ou pela realidade social latino-americana, Dudu também sofre as consequências pela geografia do Mato Grosso do Sul. “Fazemos fronteira com Paraguai e Bolívia, estamos no corredor do tráfico de drogas”, pontua a promotora. “Por isso, somos obrigados a ser mais rigorosos com esse tipo de crime.” Ao telefone, Luciana afirma que o caso de Dudu é corriqueiro, apenas mais um na cidade. “E não temos o hábito de permitir que acusados de tráfico respondam em liberdade. Sempre os mantivemos presos.”

O desembargador Carlos Eduardo Contar tem a mesma opinião. O magistrado do Tribunal de Justiça denegou os três habeas corpus apresentados pelos advogados de Dudu – na última tentativa, foi derrotado pelos colegas Manoel Mendes Carli e Ruy Celso Barbosa Florence, que acabaram mudando de ideia e acatando a argumentação dos advogados. O juiz Contar não se rebaixa ao ponto de conceder entrevistas à imprensa, mas sua fama de linha dura é reconhecida nas cortes de Campo Grande.

Ao longo de sua trajetória, já foi delegado e promotor. E, desde que recebeu a toga, não costuma aliviar a barra de presumidos traficantes. É implacável mesmo quando enxerga uma certa “verossimilhança” nas alegações da defesa, como reconheceu nos autos do caso Dudu. Em sua sentença, porém, o magistrado preferiu lembrar que o réu tem “maus antecedentes” e mantê-lo atrás das grades, seguindo a tradição que resolveu assumir.

O ator, porém, não possui nenhuma condenação anterior. As certidões criminais publicadas na página do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por ocasião de sua candidatura a vereador, em 2012, estão todas limpas. Dentro e fora do Mato Grosso do Sul.

De acordo com a Polícia Civil, pesa contra a reputação de Eduardo Miranda Martins sete boletins de ocorrência registrados antes do dia 21 de junho. Por vários motivos: vias de fato sem lesão, em 2010; desobediência, em 2011; vias de fato, ameaça e dirigir sem habilitação, em 2012; e lesão corporal dolosa e porte de drogas para consumo pessoal, em março e abril últimos.

Esse histórico é lembrado pela Promotoria, e tem sido o bastante para que as autoridades campo-grandenses formem suas próprias opiniões sobre Dudu. “Ele não é nenhum santinho”, dizem e repetem na polícia e na prefeitura quando liga algum jornalista querendo mais informações do caso. Ao mesmo tempo em que divulgam sua avaliação moral sobre o ator, os assessores do governo municipal fecham as portas para qualquer entrevista mais aprofundada com o comandante da Guarda Municipal, coronel Jonys Cabreira Lopes, quem lidera os homens responsáveis por incriminá-lo.

O chefe da corporação não retornou nenhum telefonema e respondeu a apenas um dos e-mails enviados pela reportagem, em que afirma: “Estamos acompanhando essa articulação de algumas pessoas e supostamente da OAB, mas estamos bem tranquilos quanto a isso, mas cônscios de que cumprimos nosso dever.” E nada mais. Ligando para a assessoria de imprensa da prefeitura, caminho burocrático para se chegar até o coronel Jonys, é possível ouvir as seguintes manifestações de apreço ao acusado: “Direitos humanos não é só direito dos manos!” ou “Não tinha guarda jogando pedra!”, entre outros clichês que não satisfazem às dezenas de questões que permanecem sem resposta.

O terceiro e último ato da peça escrita pela justiça mato-grossenses resultaria inevitavelmente na condenação do ator pelos tribunais do estado se um grupo de advogados, amigos, políticos e artistas de Campo Grande não estivesse se mobilizando para escrever um outro roteiro. A história que circula pelas redes sociais, bares e reuniões da cidade coloca Dudu não como traficante de drogas, mas como vítima da Guarda Municipal, uma de suas principais adversárias políticas.

Inocente

Os autores da versão favorável ao protagonista elencam uma série de indícios para sustentá-la. E, ao contrário dos acusadores, conversam com quem quiser ouvi-los – e questioná-los – sobre suas certezas. O testemunho da estudante Carolina Emboava, que presenciou a prisão de Dudu, é apenas uma das evidências apresentadas pela defesa. Conforme se prolongou o cárcere do ator, mais gente aderiu à campanha. A Ordem dos Advogados do Brasil seção Mato Grosso do Sul (OAB-MS) entrou para o movimento. A causa ganhou adeptos inclusive fora do estado.

“Fizemos todo um levantamento para ter certeza da idoneidade desse cidadão. Não iríamos apoiá-lo sem ter conhecimento de quem ele é. Não tenho nenhum receio de estar defendendo, por engano, um criminoso”, explica Joatan Loureiro, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-MS. “Setores da sociedade campo-grandense, todos com idoneidade, afirmam que Dudu jamais teria esse tipo de comportamento. Ele sempre assumiu ser usuário de maconha, mas traficante, jamais.”

Conscientes da diferença abissal que existe entre um traficante e um maconheiro, os apoiadores de Dudu acreditam que guardas municipais forjaram um flagrante contra o ator colocando os 23 papelotes de cocaína e os 13 gramas de cannabis em sua mochila. Partem do princípio de que seria idiotice demais para qualquer pessoa – e ainda mais para um sujeito tarimbado em protestos – participar de uma manifestação com uma bolsa cheia de drogas. Mais incoerente ainda seria engrossar uma tentativa de invasão da Câmara em posse de tanta mercadoria ilegal. O risco de ser preso e revistado é extremamente alto. Seria suicídio.

O tempo decorrido entre sua detenção pela Guarda Municipal e sua apresentação à delegacia também levanta suspeitas. “O foco da ilegalidade na prisão do Dudu é que ele ficou três horas detido pelos guardas municipais antes de ser apresentado à polícia judiciária. A lei exige que, no momento do flagrante, o acusado seja imediatamente levado à delegacia”, argumenta Rogério Batalha Rocha, advogado que atua voluntariamente na defesa do ator. “Por que demoraram tanto? Ninguém responde. Isso faz crer que eles utilizaram essas três horas para produzir provas. É um tempo ilegal que serviu para forjar o flagrante.”

Resta saber por que os guardas plantariam toda essa quantidade de entorpecentes na mochila do jovem. Para provar a má-fé dos homens à paisana que prenderam o ator, Rogério e seu colega no caso, Arnaldo Molina, pretendem fazer um exercício de memória, recordando episódios passados em que Dudu e guardas municipais se encontraram nas ruas de Campo Grande. É uma história recente, ainda mais recente que a própria Guarda Municipal.

Enfrentamentos

As propostas apresentadas por Dudu nas eleições podem ajudar a entender o caso. Durante a campanha, o ator criticou duramente o Projeto de Lei 61, de 2013, que altera os artigos 8º e 81 da Lei Orgânica do Município. Aprovado em maio, o texto autoriza o porte de armas pelos guardas municipais. Dudu defendia que os homens da corporação não estavam preparados para usar revólveres. Alegava que um histórico de abuso de autoridade, abordagens violentas e perseguição a determinados setores sociais, como skatistas e artistas de rua, era argumento suficiente para não patrocinar o armamento da Guarda.

“Na Comissão de Direitos Humanos da OAB-MS, é comum recebermos denúncias de discriminação contra esses grupos, mesmo que seja em praça pública, por setores da Polícia Militar e da Guarda Municipal. Eles costumam tratar essas pessoas com muito preconceito”, atesta Joatan Loureiro. “Dudu é um interlocutor desses grupos. Ele se contrapunha à abordagem violenta das autoridades, argumentava, discutia.”

Os espaços utilizados pelo ator para contestar a atuação dos guardas municipais não era apenas a rua. Ele se meteu em alguns embates diretos com os agentes municipais, questionando cara a cara suas atitudes, mas também costumava ir às sessões da Câmara e aos jornais campo-grandenses denunciar o que considerava desvios de conduta na corporação. Até porque sofria literalmente na pele os efeitos da abordagem indevida. E não só da Guarda.

Em março de 2011, Dudu procurou a reportagem do portal Campo Grande News para dar publicidade a agressões racistas que sofreu de policiais militares. O ator voltava para casa depois de participar da Semana do Teatro e do Circo, no Horto Florestal, quando soldados o abordaram com armas em punho, chamando-o de “macaco” e “crioulo vagabundo”. Dudu não deixou barato: respondeu que não era macaco nem vagabundo. Os PMs entenderam a reação como desacato, ele acabou sendo algemado, levado à delegacia e autuado por desobediência – eis a origem de um dos BOs que mancham sua reputação perante a justiça.

Dois anos mais tarde, o ator ganhou espaço nas páginas do jornal O Estado do Mato Grosso do Sul para dizer que havia sido espancado por 12 guardas municipais num parque linear no centro da cidade conhecido como Orla Morena, point de skatistas e outras tribos urbanas – entre as autoridades, porém, é um ambiente frequentado por usuários de drogas. Dois meses antes, Dudu havia protocolado na Ouvidoria da prefeitura uma reclamação contra as abordagens “grosseiras” da Guarda Municipal sobre os jovens que circulam pelo espaço, sobretudo à noite.

No último dia 29 de abril, o ator explica que estava por ali com amigos quando agentes chegaram agredindo verbalmente os rapazes, xingando de “vagabundos” e “desocupados”. “Eu retruquei com eles que não tinha nenhum vagabundo, e começou uma discussão”, disse à reportagem do jornal. “Eles me enforcaram até eu apagar e me levaram para a viatura. Lá dentro, fui agredido com cassetetes.” Uma moradora das redondezas afirma ao jornal que presenciou toda a cena. A corporação disse que apuraria o caso e jamais deu satisfações sobre a culpabilidade dos envolvidos, que permanecem anônimos. Ao contrário de Dudu.

A notícia em questão vem acompanhada de uma foto imensa do ator, mostrando o rosto e as marcas deixadas pelas agressões. Qualquer pessoa que lesse a reportagem, ainda que nunca houvesse visto Eduardo Miranda Martins, seria capaz de reconhecê-lo na rua. É razoável supor que guardas municipais de Campo Grande tomaram conhecimento da reportagem – e se incomodaram com ela. Afinal, era mais um argumento contra o uso de armas pela corporação, que ainda não fora votado. No texto, Dudu afirma que levou a denúncia também à Câmara, OAB-MS e Ministério Público. “Vou atrás até que paguem pela humilhação a que me submeteram e nos submetem diariamente.”

Assédio

O estardalhaço público rendeu à família de Dudu algumas visitas informais da Guarda Municipal. “Depois de ter apanhado na Orla Morena, guardas começaram a ir constantemente até a casa dele, perguntando por ele. Diziam que queriam conversar com o Dudu”, lembra o advogado Rogério Batalha Rocha, reproduzindo depoimentos da mãe do ator e de uma vizinha. “Isso é assédio. Eles não são oficiais de justiça, não têm a prerrogativa de ir à casa das pessoas perguntar sobre seu paradeiro sem ordem judicial.”

Em junho, duas semanas antes de sua prisão, Dudu foi um dos cidadãos que enfrentaram verbalmente guardas municipais que queriam impedir uma vigília pacífica na Praça do Rádio, na região central de Campo Grande. Pessoas ligadas à causa indígena, muito latente no estado, haviam resolvido passar uma noite à luz de velas em homenagem ao índio Oziel, terena assassinado por fazendeiros alguns dias antes na localidade sul-mato-grossense de Sidrolândia. Os agentes tentaram impedir a concentração, mas acabaram dissuadidos pelos argumentos legalistas dos manifestantes.

“Depois da confusão, Dudu me disse: ‘Ainda bem que vocês estão aqui, porque, em toda manifestação pública em que apareço, a Guarda Municipal sempre está atrás de mim’”, explica Priscila Anzoategui, membro do Coletivo Terra Vermelha, entidade que organizara a vigília. Formada em Direito, Priscila foi uma das manifestantes que lembrou os guardas sobre os direitos garantidos pela Constituição. “Dudu também falou: ‘Se um dia eu for preso, vocês, que são advogados, vão ter que me tirar da cadeia’. Parecia que ele estava tendo uma premonição.”

Ao mesmo tempo em que recorrem a todas as alternativas jurídicas possíveis, os apoiadores de Dudu realizam uma campanha na tentativa de influenciar a opinião pública campo-grandense. Não têm conseguido muito resultado. As denúncias da injustiça cometida contra Dudu ainda não conseguiram romper a barreira dos círculos culturais de Campo Grande. De acordo com Carol Emboava, nem a faculdade de Direito onde estuda, frequentada diariamente por uma testemunha ocular do processo, chegou a discutir a questão.

Alguns meios de comunicação locais, como os portais Mídia Max e Campo Grande News, acompanham as novidades do caso. Mas a capital sul-mato-grossense não parou nem dá sinais de que vai parar para pedir a liberdade do ator.

Ainda assim, no último 7 de setembro, Dia da Independência, o movimento Dudu Livre se concentrou na mesma Praça do Rádio onde muitos o conheceram com o objetivo de arrecadar livros para o Centro de Triagem: o ator está tentando montar uma biblioteca no presídio. “Conseguimos cerca de 40 livros”, contabiliza Priscila, que passou onze horas dentro de uma jaula improvisada na praça, das 9h às 20h, para chamar a atenção das pessoas para o caso. “Queremos criar um fato político. E vamos continuar nos enjaulando em outros lugares da cidade até que Dudu seja absolvido.”