Exploração cruel: ao sair do puro debate, comitê de SP leva ‘choque de realidade’

Imigrantes são trazidos para trabalho escravo no Brasil, e aceitam porque a situação no país de origem é ainda pior

Há relato de jornadas de até 18 horas em oficinas de costura onde trabalham bolivianos na região central da capital paulista (Foto: Gerardo Lazzari)

São Paulo – O debate sobre o enfrentamento ao tráfico de pessoas no estado de São Paulo começou a extrapolar as salas de discussão e a chegar a locais onde o crime está ocorrendo. O comitê que dá apoio ao núcleo nacional de discussão do tema começou a fazer diligências e deu de cara com situações degradantes envolvendo trabalhadores imigrantes. A situação é grave em São Paulo. Há registro de muitos casos de tráfico para fins de trabalho escravo envolvendo bolivianos, paraguaios, peruanos, chilenos e equatorianos. “Essas pessoas aceitam ser exploradas, especialmente nas confecções, porque em suas terras é muito pior”, relata a defensora pública da União em São Paulo Daniela Muscari, responsável pelo Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (GT-ETP) da Defensoria Pública da União em São Paulo (DPU/SP).  Para ela, é uma situação desumana. “Além dos direitos humanos, são trabalhadores caprichosos, trabalham bem.” 

Em meados de junho passado Daniela participou de uma diligência organizada pela coordenação do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em oficinas de costura e encontrou muitos bolivianos em condições de exploração. A defensora atendeu aos trabalhadores, tirando suas dúvidas. Eles conseguiram o encaminhamento para a expedição emergencial das carteiras de trabalho e das guias do seguro-desemprego. Com representantes da marca que trabalhava com a exploração de imigrantes começou a ser discutido o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).  Só que às vezes isso não ocorre. “Quando não chegamos a acerto a gente propõe ação civil pública para garantir a indenização tanto dos direitos coletivos quando dos individuais”, explica Daniela. 

Nessas diligências o comitê leva os profissionais para que eles tenham um choque de realidade – juiz, defensor, psicólogo, assistente social, todo mundo participa. “O problema é que começamos a identificar que essas pessoas não só estavam trabalhando em condições degradantes, mas estavam sendo trazidas para isso. Aí a gente procurou uma maneira de atender a pessoa de uma forma mais completa. Não era só a multa para a empresa que interessava, por conta de todas as irregularidades trabalhistas”, diz. Ainda faltava a regularização da vítima quando era estrangeira e estava sem papelada. “Muitas vezes essa pessoa tinha o direito de morar e trabalhar aqui mas ela não sabia.”

O comitê tenta efetivar todos os direitos que a pessoa tem e sobre os quais não tinha ideia, para que ela tenha dignidade, que viva em condições de saúde, de higiene, que tenha acesso a educação. “São coisas que estão na Declaração Universal dos Direitos Humanos”, observa a defensora. “Eles já tinham direito a isso, só não foram atrás porque não sabiam que estavam sendo explorados, enganados. Às vezes ficavam presos dentro das oficinas.”

Em um dos casos acompanhados pela defensora a pessoa não tinha situação regular para ficar no país, mas conseguiu, por uma resolução do Conselho Nacional de Imigração, que diz que a vítima de tráfico de pessoas aqui tem direito de permanência no Brasil. “Então, a gente conseguiu que fosse reconhecido o direito dessa pessoa.” Em outro caso o comitê conseguiu reinserção no mercado de trabalho para a vítima.

Só que a dificuldade para garantir os direitos é grande. “Por mais que a gente esteja lutando contra a exploração do trabalho, a sociedade não entende que o trabalho forçado está debaixo do nariz de cada um. Está em todos os cantos, no produto pirata, numa obra no meio da cidade”, aponta.

16 a 18 horas de jornada

 

Em audiência realizada na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados no dia 30 de junho, a presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias do Setor Têxtil, Eunice Cabral, afirmou que os trabalhadores em regime de escravidão no setor têxtil na capital paulista, cumprem carga de trabalho de 16 a 18 horas por dia, recebendo em média R$ 2 por peça produzida. São Paulo conta com 80 mil profissionais no setor e a maioria seria de bolivianos, atuando em condições precárias.

“Eles moram no próprio local de trabalho. São de 4 a 10 famílias em uma única sada. Muitos estão ilegalmente no Brasil, mas isso não dá o direito de serem explorados”, disse Eunice aos deputados.

 Segundo declaração do deputado Arnaldo Jordy (PPS-PA), os casos detectados no Brasil são de operários contratados por empresas terceirizadas pelas grandes marcas. “Esses grupos se beneficiam do baixo custo de produção pela ausência de pagamento de impostos trabalhistas desses trabalhadores, que por vezes, também foram vítimas do tráfico de pessoas”, disse. 

 
 

À própria sorte

As vítimas de tráfico humano podem não ter consciência de seus direitos. A extrema pobreza pode fazê-la aceitar a própria sorte. Mas o Estado não pode admitir que os direitos dela sejam violados. “Por mais que as vítimas não tenham como brigar, nós temos de reconhecer nela o direito à dignidade”, afirma Daniela. Ela explica que a vontade expressa pela pessoa naquele momento pode não ser o que ela realmente sente e que, por isso cabe ao estado preservar a dignidade, e a sociedade em geral também tem de reconhecer isso.

“O brasileiro acha que está tudo bem, às mil maravilhas. E as pessoas não percebem que direitos básicos não são respeitados”, observa a defensora. Para ela, o pior de tudo é que as instituições públicas não cumprem seus compromissos, não têm seriedade. “Quando a gente vê uma atitude firme, um passo bem planejado, pode estar certo de que há alguém por trás, uma vontade de uma pessoa, não um compromisso institucional com a causa, os direitos humanos.” Ela lamenta que os brasileiros não têm conhecimento dos próprios direitos, quanto mais respeitar ao próximo.

“As empresas sabem que uma pessoa fabrica seu produto em condição degradante e não fazem nada. Isso é horrível. A gente tem de pensar em quem faz nossa roupa, a comida, que limpa a casa, o chá que bebemos”, diz.

Daniela lembra que muitas pessoas trabalham de forma degradante em fazendas de produção de carvão, na construção civil, em madeireiras – as pessoas prometem condições boas e no fim das contas não é nada daquilo. O tráfico de pessoas se traduz na fraude quando os traficantes prometem uma coisa e a realidade é outra, na pressão psicológica (‘se você não fizer isso vou te bater’) ou aproveitamento da condição de vulnerabilidade. A vítima é tão submissa que o fato de o traficante se aproveitar dessa situação, mesmo ela sabendo a verdade, se constitui em crime.

Para a defensora, também é grave o fato de não se investir na prevenção. “Ficamos nessa briga contra o crime, mas prevenir é muito melhor”, diz. Munidas de informações as pessoas se preparam melhor. “Houve uma época em que os passaportes eram expedidos com um folder grampeado dando dicas – ‘mantenha xerox do passaporte, entre em contato periodicamente com a família, saiba o endereço para onde está indo, confirme se o endereço existe'”, lembra.

As pessoas se descuidam muito. “Por incrível que pareça as pessoas acham que tráfico de pessoas é lenda urbana. Mas a situação é gravíssima. A internet ampliou esse crime à enésima potência. As pessoas acham que morar fora do país é o máximo e acabam se envolvendo em situações complicadas”, afirma Daniela.

O Comitê Estadual Interinstitucional de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas foi criado pelo Decreto 54.101, de 2009, nasceu com função consultiva, mas, segundo Daniela, essas ações concretas o tornaram um dos mais importantes do país.