Megaeventos no Rio de Janeiro desafiam o direito à cidade

Naquilo que parece a repetição da mesma história de sempre, o prefeito Eduardo Paes (PMDB) dá roupas novas para um processo já bastante conhecido: a periferização da pobreza

Giuseppe Bizzarri/Folhapress

A informação sobre a remoção chega em cima da hora, no que parece um processo deliberado para impedir resistência

O Rio de Janeiro passa hoje por uma onda de intervenções e obras digna de Pereira Passos, o prefeito que deu cara ao centro da cidade no início do século 20. Tendo como pano de fundo a preparação para a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016, corredores de ônibus são abertos, instalações esportivas são demolidas, comunidades inteiras são removidas. Naquilo que parece a repetição da mesma história de sempre, o prefeito Eduardo Paes (PMDB) dá roupas novas para um processo já bastante conhecido das cidades brasileiras: a periferização da pobreza.

A segunda versão do dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, elaborado pelo Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio com o auxílio dos pesquisadores do Observatório das Metrópoles, é um documento fundamental para conhecer os problemas que afetam os direitos da população pobre do Rio. Revisto e ampliado, o dossiê mostra o que acontece com aqueles que têm o azar de morar no caminho das obras: há pouco a se fazer para garantir seus direitos. O documento lista as ações contra os moradores nas áreas de habitação, mobilidade, trabalho, esporte, meio ambiente e outras.

A intervenção que afeta de maneira mais profunda os moradores é a remoção das comunidades para obras. Até agora, a estimativa é de que 37 comunidades tenham sido afetadas com remoção total ou parcial. Pelo menos 3,1 mil famílias foram removidas e 7,8 mil estão ameaçadas. Esse número é impreciso por duas razões. A primeira é que estado e prefeitura não divulgam dados precisos a respeito das remoções e a segunda é que os corredores de ônibus (maiores responsáveis pelas remoções) ainda estão em construção, mas os detalhes do projeto não são divulgados. Por isso, as comunidades que estão no caminho das obras não sabem se serão removidas ou não.

“A informação sobre a remoção chega com pouca antecedência aos atingidos”, afirma o pesquisador Orlando dos Santos Júnior, do Observatório das Metrópoles. “Tudo leva a crer que é uma política deliberada de desinformação, para dificultar a criação de resistência”, acredita. As negociações para a realocação dos moradores é feita de forma individual e com pouco tempo para a resposta. “Há uma pressão, o morador é informado de que ou aceita um apartamento distante ou pode acabar sem nada”, conta Silva Júnior.

Os mais afetados são aqueles que jamais tiveram a oportunidade de ter segurança na posse de sua moradia. Os assentamentos informais, única opção para uma grande parte da classe trabalhadora, são os mais afetados pelas remoções. Como não são os donos formais do território – ainda que morem no local por anos – essas pessoas têm dificuldades de negociar. Embora haja, em teoria, o reconhecimento de que essas pessoas têm direito a esse território, esse direito não é respeitado. Essa cartilha da Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada explica melhor essa dificuldade.

Projeto de cidade

Para entender a magnitude das mudanças pelas quais o Rio de Janeiro está passando na preparação para a Copa do Mundo e a Olimpíada, é preciso saber que a cidade apostou na estratégia dos megaeventos como motor do desenvolvimento urbano. Hoje, todas as grandes intervenções que acontecem na cidade têm como foco as competições esportivas.

Essa estratégia não é nova nem exclusiva do Rio de Janeiro. Muitas cidades já passaram por esse processo. Barcelona é o exemplo mais famoso, por ter sido muito bem-sucedido em sua missão de transformar a cidade. Para receber os turistas que chegam para os Jogos Olímpicos e/ou a Copa do Mundo, as cidades não medem esforços para melhorar sua imagem. O objetivo é criar uma boa fama no mundo do turismo, atraindo mais visitantes no futuro.

Há muito debate no meio acadêmico sobre a pertinência dessa estratégia. É quase impossível achar dados que comprovem ou refutem de maneira cabal o sucesso dessa aposta, já que as cidades que recebem os megaeventos normalmente já são bastante dinâmicas, ou seja, têm inúmeros motivos para receber visitantes. Não há como isolar o efeito de uma Olimpíada para análise. Mas, funcionando ou não, uma coisa é certa: a preparação para as competições afeta a cidade de diversas formas, quase nunca de forma democrática.

É a falta de democracia na escolha desse tipo de estratégia que deveria estar em discussão hoje, acredita o pesquisador Orlando Silva Júnior. “Não se trata apenas de eventos esportivos. As transformações que ocorrem hoje no Rio terão reflexos por muito tempo”, afirma. “A Olimpíada é um elemento legitimador do processo de valorização das áreas dos Jogos, mas quem ganha com isso? O desenvolvimento é para quem?”, questiona.

Os efeitos estão longe de serem sentidos apenas pelos moradores dos bairros atingidos por obras. A valorização imobiliária deixa a cidade cada vez mais cara. Uma busca simples em anúncios de aluguel mostra que os imóveis atingiram valores assustadores. Um apartamento de três quartos na região do Flamengo, que é um dos bairros mais baratos da Zona Sul, dificilmente sai por menos de R$ 700 mil embora a média seja bem superior. Os aluguéis partem dos R$ 3 mil e chegam facilmente a 5 mil.

Embora a reestruturação da cidade esteja acontecendo a pleno vapor, Silva Júnior acredita que ainda é possível questionar a sua validade. “Nenhuma dessas ações de remoção ocorreu sem resistência. É preciso divulgar o que está acontecendo e debater”, diz. “Há um sentimento geral de que a cidade está ficando mais elitizada, e é verdade. Todos são afetados por isso. É preciso desconstruir o discurso oficial e decidir que cidade deve surgir desse processo.”