Filme ‘Doméstica’ expõe laços afetivos e de poder no cotidiano de empregadas

Documentário de Gabriel Mascaro escancara herança escravocrata num tempo em que o país rediscute um novo patamar de relação de trabalho

Empregada da empregada: Flávia trabalha na casa de sua patroa, que também trabalha como empregada em outra casa de classe média alta (Foto: Divulgação)

Não é à toa que o documentário Doméstica chega aos cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília em 1° de Maio, Dia Internacional do Trabalho. Apesar de a categoria ter direitos reconhecidos com a recém-aprovada PEC das Domésticas, as condições em que vive a maioria dessas trabalhadoras nem sempre são dignas de comemoração. É o que retrata o longa-metragem de Gabriel Mascaro (Um Lugar ao Sol, Avenida Brasília e Formosa).

Para conseguir um olhar mais íntimo e menos intimidador, o diretor deixou câmeras com sete adolescentes de diferentes condições sociais para que gravassem durante uma semana suas empregadas domésticas em seus respectivos trabalhos. O material bruto entregue para o diretor traz à tona as relações de poder que muitas vezes se emaranham com questões afetivas das empregadas em relação aos patrões e vice- e-versa.

Os adolescentes se apresentam e contam há quanto tempo suas empregadas trabalham em suas casas: “Ela é da família”, “está aqui desde que nasci” são frases comuns no documentário, cuja riqueza, longe de ser qualquer aspecto técnico, está na diversidade dos personagens retratados e na maneira que entrevistados (domésticas) e entrevistadores (os “patrõezinhos”) se relacionam.

As imagens amadoras chegam a incomodar no início, mas quando embarcamos nas histórias e em todas as nuances das relações, a questão técnica vira um mero detalhe. Antes de entrar na sala de cinema, é preciso conhecer a proposta do diretor para se deixar levar pelas histórias: da patroa que na infância era a melhor amiga da atual empregada; a relação da senhora que cuida do filho de sua ajudante como se fosse seu; a vergonha e o constrangimento do empregado doméstico que tem sua história pessoal devassada pela chefe; da doméstica que cuida da casa e dos filhos de uma doméstica…

Apesar de não se tratar de um filme de denúncia, a violência contra a mulher, o trabalho infantil, e solidão são recorrentes no discurso dessas mulheres. Fica clara a intenção do diretor de mostrar que a profissão é, de alguma forma, atrelada à pobreza e como a sociedade encara com naturalidade péssimas condições de trabalho. É considerado normal, por exemplo, oferecer o minúsculo quarto dos fundos para as ajudantes, fazer com que não comam junto dos patrões e não dar folga durante muito tempo. Afinal, o morar, o comer e o viver dessas profissionais vêm depois do morar bem, comer bem e do viver bem de seus “senhores”.

Mesmo assim, poucas no filme deixam transparecer um descontentamento. Ao contrário. “Se não fosse bom trabalhar aqui, eu não estaria aqui há 13 anos, né? Mais tempo eu passei aqui do que eu passei com a minha mãe”, diz Gracinha que, na teoria, tira folga a cada 15 dias para ir visitar a família. “Mas eu tenho que ficar aqui quando alguém viaja, quando sua vó adoece…”, declara para a adolescente, filha de seus patrões.

No começo do ano passado, em que o documentário foi filmado, Gracinha não pôde ir para sua casa durante três meses. “O que ninguém imaginava era que esses seriam os últimos meses do meu filho, o único filho que eu tinha, que foi assassinado. E eu quase não fiquei com ele esse ano”, afirma a doméstica que, como a maioria das outras, fazem do ambiente de trabalho também sua moradia. Como que para se recompor, em seguida apresenta o ventilador e sua cama, cujo colchão – “ortopédico!” – a patroa lhe presenteou. “É por isso que eu me sinto em casa.”

Documentário Doméstica

  • Direção e concepção: Gabriel Mascaro
  • Produção: Rachel Ellis
  • Montagem: Eduardo Serrano
  • Com: Dilma dos Santos Souza, Flávia Santos Silva, Helena Araújo, Lucimar Roza, Maria das Graças Almeida, Sérgio de Jesus e Vanuza de Oliveira
  • Fotografia: Alana Santos Fahel, Ana Beatriz de Oliveira, Jenifer Rodrigues Régis, Juana Souza de Castro, Luiz Felipe Godinho, Perla Sachs Kindi, Claudomiro Canaleo Neto
  • Pesquisa e produção local: Carolina Fernandes (Manaus), Livia de Melo (Recife), Marcelo Grabowsky (Rio de Janeiro), Isabel Veiga (Rio de Janeiro), Marcella Sneider (São Paulo), Natalice Sales (Salvador), Tiago de Aragão (Brasilia)
  • Duração: 70 min

Não dá para não se incomodar com o constrangimento de Lucimar quando questionada se era feliz e sobre como a relação pessoal se deteriorou depois que veio trabalhar com a patroa e amiga de infância. Pior ainda quando a chefe de Sérgio expõe os problemas de família dele sem pedir permissão. “Não sei se ele me autoriza, mas como sou eu quem está falando, vou falar.” O olhar cabisbaixo do empregado chega a dar um nó no estômago.

Relações como essas apresentadas pelo filme de Mascaro se desenrolam todos os dias nas casas de milhares de brasileiros. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem cerca de 7 milhões de mulheres trabalhando como empregadas domésticas no país. O que o documentário faz é apresentar um microcosmo de uma profissão que ainda guarda resquícios de uma cultura escravocrata em pleno século 21.