‘É preciso distribuir cidade’

Expansão do mercado imobiliário não traz desenvolvimento urbano, mas crescimento desordenado (Foto: sxc.hu) Uma das principais pensadoras da questão urbana no Brasil, Ermínia Maricato lançou o livro “Impasse da Política […]

Expansão do mercado imobiliário não traz desenvolvimento urbano, mas crescimento desordenado (Foto: sxc.hu)

Uma das principais pensadoras da questão urbana no Brasil, Ermínia Maricato lançou o livro “Impasse da Política Urbana no Brasil” como forma de trazer uma avaliação do estado atual da discussão sobre cidades no país. Para ela, chegamos ao fim de um ciclo com o fim do Governo Lula. Ela argumenta que, depois de anos de luta social em que a questão do acesso à terra era um tema central, as bandeiras acabaram perdendo força. “Houve avanços institucionais importantes, como a criação do Ministério das Cidades e do Estatuto das Cidades, mas só um louco diria que nossas cidades estão melhores”, afirma.

Com empolgação de iniciante, ela defende mudanças de paradigmas em relação ao mercado imobiliário, que hoje é a força que define o espaço urbano brasileiro. “Não basta distribuir renda e gerar emprego, é preciso distribuir cidade, e isso está ligado à questão da terra. E não é nenhuma ideia socialista, é o que acontece nos países centrais do capitalismo”, afirma.

Abaixo, segue a primeira parte da entrevista com Ermínia Maricato.

Por que a criação do Ministério das Cidades não conseguiu interferir na forma como as cidades brasileiras se desenvolvem?

Acho que se tivéssemos continuado com a orientação do começo, o Ministério ajudaria a melhorar a vida nas cidades brasileiras. Inauguramos uma série de avanços institucionais no Ministério das Cidades, mas isso não implicou na melhora das cidades e no desenvolvimento urbano. Depois de dois anos e meio, no entanto, a orientação mudou e a equipe original deixou seus cargos.

Antes de mais nada, a ideia era que o Ministério colocasse a questão urbana na agenda nacional, como um fato político, como algo que a população começasse a discutir. Queríamos que os vereadores começassem a se dar conta que o jeito das Câmaras Municipais trabalharem não é interessante para as cidades. Não existe um conhecimento da cidade, mas a ideia de que quanto mais obras, mais a cidade vai melhorar, o que não é verdade. Há obras que prejudicam, são regressão no sentido de uma cidade mais igualitária, sustentável, justa, agradável, menos poluída. Não é verdade que o aumento do preço dos imóveis implica no desenvolvimento da cidade como muita gente pensa. Pelo contrário, esse aumento bárbaro dos últimos dois anos implica em exclusão, isso é óbvio. Resulta num mercado especulativo selvagem. Então a tese que defendo é que de fato houve uma mudança da agenda política nos dois governos Lula, mas nessa agenda política nova no Brasil, que é a de combate à miséria, a política urbana não entrou. Por exemplo, quando a política habitacional entra do jeito que entrou, ela subverte o desenvolvimento das cidades. Isso não implica em desenvolvimento urbano, que é crescimento com a melhoria das condições gerais, com sustentabilidade. O que vemos é um crescimento desenfreado, extensivo, com muitos vazios, levando os pobres para a periferia da periferia.

Os avanços institucionais existiram, mas não são aplicados. Onde está a trava?

Está na selva que é a luta pela captação da renda imobiliária. A cidade é um grande negócio. Combater esse modelo de apropriação do lucro gerado pelo simples direito de propriedade, e não pelo trabalho (os terrenos aumentam de valor pelo simples fato de que o poder público investe) é uma luta surda na cidade e isso leva o povo a ficar de fora. A cidade é um ativo, mas os economistas não enxergam isso no Brasil. Ninguém enxerga o que é a questão urbana. O nó dessa questão é a apropriação da renda imobiliária. Como o Brasil tem uma tradição de injustiça e de desigualdade, a cidade obviamente reflete isso. Mas ela não só reflete como reproduz a desigualdade, porque tem na sua produção uma forma muito desigual. Distribuição de renda e criação de emprego não bastam para caminhar no sentido de uma sociedade urbana mais justa; é preciso distribuir cidade. Isso significa controlar o uso do solo, os ganhos de mercado. Não estou aqui fazendo nenhum discurso socialista. Nos países capitalistas centrais o solo é extremamente controlado.

Por que existe essa diferença tão grande entre a aplicação de regras sobre a terra em países centrais e no Brasil? Eles não deixam de gerar lucro privado quando aplicam as regulações, mas isso não é concebido pelos governantes e pelo setor privado brasileiros.

Acho que é um pouco culpa da academia. Em muitos círculos acadêmicos o engajamento não é bem visto. Parece ser uma coisa menor, como se apenas o discurso abstrato fosse digno. Na área do Direito, por exemplo, existe um discurso muito abstrato, não há compromisso do Judiciário brasileiro com a realidade, por exemplo. A própria universidade bebe muito mais as lições de fora do país do que cria, tem alguma originalidade para pensar nossos problemas. Quando você olha o que são nossas metrópoles em comparação com as europeias e americanas, percebe que não dá para importar a lei, por que é extremamente diferente o controle do solo que existe nesses lugares e a falta de controle que existe aqui. Você só consegue aplicar no Brasil uma lei trazida de fora em uma parte do território.

Como está acontecendo em projetos como o Porto Maravilha, no Rio, e Nova Luz, em São Paulo, por exemplo?

Exatamente. O resto da cidade fica na ilegalidade. E essa ilegalidade avança para as áreas de preservação ambiental, criando áreas de risco.

Voltando à questão dos mecanismos legais já existentes, existem leis de controle do uso e ocupação do solo, e para a aplicação da função social da propriedade, mas eles não são usados. Por que?

O problema é o seguinte. De um lado existe a legislação urbana e de outro as leis econômicas de produção do espaço. Você tem uma luta para se apropriar de ganhos da produção do espaço que a lei tenta controlar. O Plano Diretor tem sempre a intenção de produzir uma cidade igualitária, harmônica, sustentável etc. Mas as forças em conflito na cidade não estão nem aí. Você pode falar que o Estado tem que fazer cumprir a lei, mas ele não faz. Por quê? Ele teria que quebrar os ovos para fazer uma omelete, mas ele não pode. Não pode porque muitos dos integrantes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário são submissos ao capital imobiliário e de construção pesada, por exemplo. É impossível de quebrar essa submissão. Muitos prefeitos do Brasil saíram da indústria imobiliária.

E são financiados por ela.

Financiados pelo mercado imobiliário, pelas construtoras. Isso ficou claro na Câmara Municipal de São Paulo. Você quer que o sujeito corte da própria carne? É isso que o Estatuto das Cidades pretende, uma inversão de poder. Eu tinha alguma esperança de que isso fosse possível, a partir de um trabalho político, de trazer para a agenda brasileira a questão urbana, mas isso não aconteceu. O Ministério das Cidades é tão pouco importante que foi parar na mão do PP, que é o partido do Maluf. Não tem nada mais explícito. No Brasil também não há continuidade nos governos, a população desconhece como é aplicado o orçamento, quais são as competências do poder público. A nossa Constituição Federal ficou muito fragmentada em relação à questão urbana. O poder local tem dificuldade em contrariar o capital imobiliário, de construção e a vontade dos proprietários.

O Governo Federal tem, de fato, pouca competência legal para interferir na questão urbana, que é muito descentralizada

Uma das discussões que fazíamos [no Ministério] era se não poderíamos criar diretrizes para as Regiões Metropolitanas em nível nacional, que é outra questão que está no limbo. A ideia era que o Governo Federal pudesse se comportar como um indutor, organizador, formador de competências técnicas, de organização de iniciativas. Mas hoje ninguém quer saber da competência urbana.

Pode-se dizer que existe um vazio institucional a ser ocupado aí ou funcionaria manter a descentralização da maneira que está, desde que as cidades se importassem com a questão urbana?

Acho que sim. Nossa Constituição é excessivamente fragmentada. E eu apoiei essa Constituição. Saímos da ditadura querendo fugir da concentração de competências, porque o BNH, a política de saneamento, habitacional eram muito centralizadas, tudo era de cima para baixo. Reagindo a isso, nós fomos quase para o municipalismo. Tínhamos uma razão forte, que é que cada cidade é diferente da outra, em espaço, tradição cultural, tamanho e outras características. Mas as normas ficaram tão soltas que ninguém tomou a responsabilidade.

Mas seria necessária uma mudança constitucional?

Não, nesse caso legislação complementar resolveria o assunto. Mas estou desanimada com leis de uma forma geral. Temos uma das leis urbanas mais avançadas do mundo, o Estatuto das Cidades. Temos muito plano e muita lei. Se aplicasse o que está aí, já estaria muito bom.