Marcio Pochmann

Fim da integração desenvolvimentista e selvageria do mercado neoliberal

Privatizar serviços públicos não compensa "redução" do Estado. Em 30 anos, por exemplo, número de agentes privados de segurança cresceu duas vezes; a população carcerária, 10 vezes

Stafford GREEN/Pixabay
Stafford GREEN/Pixabay

O modelo de incorporação social institucionalizado a partir da década de 1930 no Brasil se viabilizou na forma do corporativismo, que apesar de suas diversas deficiências contribuiu para promover identidade coletiva em torno da perspectiva do Estado-nação. Nesses termos, conseguiu constituir um corpo orgânico de dimensão nacional, capaz de alcançar o consentimento político para agregar o conjunto de interesses particularizados, sem recuar substancialmente a estrutura de privilégios no interior da sociedade urbana e industrial.

Em 1990 o Brasil tinha 1,5 agente privado de segurança para cada um agente público. Hoje essa relação está em três agentes privados a cada agente público. Em paralelo, a população carcerária saltou de 90 mil presos em 1990 para 820 mil presos em 2019

Com a “Era dos Fernandos” (Collor, 1990-92; Cardoso, 1995-2002), o compromisso emitido de “virar a página do getulismo” para implantar o projeto neoliberal de sociedade, o corporativismo passou a sofrer inegável inflexão. Gradualmente, a questão social se transformou, aproximando os governos neoliberais de então aos anteriores a instalação da Consolidação das Leis do Trabalho, como no caso de Washington Luís (1926-1939) que se destacou por afirmar que “a questão social é questão de polícia”. Ou seja, a reivindicação de direitos deveria ser respondida por repressão, conforme ocorria até a Revolução de 1930.

Embora os governos do PT conseguissem recuperar a perspectiva do projeto de desenvolvimento nacional, com a crescente inclusão dos pobres no interior da sociedade, o golpe de Estado de 2016 voltou novamente repor a trajetória neoliberal iniciada em 1990. Assim, a lógica da sobrevivência enquanto principal objetivo de vida das multidões no país passou a predominar frente à crescente escassez da oferta de bens e serviços públicos, especialmente com o governo Bolsonaro.

Em alternativa às iniciativas anteriores de natureza desenvolvimentista de integração social, expandiram-se ações geralmente à margem do Estado como aquelas de inspiração, sobretudo religiosas, bem como as corporações leigas associadas ao crime organizado e às milícias. Com o abandono crescente do acolhimento dos interesses públicos e o avanço da miséria avassaladora e desigualdade explosiva, emergiu a nova lógica neoliberal da sociedade do descarte social.

A decadência atual imposta à estrutura social herdada do corporativismo estatal fragiliza as identidades sociais, gerando desintegração das normas sociais. A emergência do estado de anomia social que desmonta o padrão de integração anterior termina por eleger a violência e a força da coerção apregoada pelo extremismo ideológico de direita a sustentar – a qualquer custo – o projeto neoliberal de sociedade do descarte.

Quanto mais as iniciativas na esfera privada são estimuladas, menos substituem ou compensam a retirada do Estado. Ausência do crescimento econômico desacredita cada vez mais as possiblidades de incorporação dos segmentos sociais, desmobilizando a estrutura social e as esperanças de um futuro melhor.

Exemplo disso transcorre na temática da segurança que através da privatização dos espaços públicos e do pagamento direto por segurança não pública estimulou a generalização do emprego de agentes privados. Em 2019, por exemplo, o Brasil registrou 1,7 milhão de agentes privados de segurança, significando 2,1 vezes mais o que o registrado em 1990.

A antiga relação de 1,5 agente privado para cada um agente público constatada em 1990 passou a ser de três agentes privados a cada 1 agente público atualmente. Em paralelo, a população carcerária no Brasil saltou de 90 mil presos em 1990 para 820 mil presos em 2019, representando a multiplicação em 9,1 vezes da população carcerária no mesmo período de tempo, enquanto cerca de 14% dos homicídios ocorridos no mundo a cada ano seguem ocorrendo no território nacional.



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