'defensorite'

Por que Defensoria Pública e MP se afastam da sociedade

Capacidade de se colocar no lugar do outro e, por meio da técnica jurídica, buscar soluções para os mais diversos problemas é a maior prova de que o Defensor Público é um ser humano

SCO/STF

Newton analisa que o simples cumprimento da Constituição não garante ‘uma possível humanidade do Defensor Público’

Aviso inicial aos navegantes: o presente texto não constitui qualquer glamourização daquele que tem por missão defensorar. Trata-se, na verdade, de um importante e necessário alerta para uma instituição pública relevante e que se tornou atrativa, em razão da possibilidade de uma estabilidade financeira e profissional, para os chamados “concurseiros”.

Se parcela do Ministério Público e do Poder Judiciário perderam o rumo traçado pelo Texto Constitucional, não pode a Defensoria Pública adotar esses desvios como precedente e, assim, esquecer a sua imprescindível função de contrapoder em uma sociedade que reconhece a desigualdade e promete superá-la, vide o contido no artigo 3º, Constituição da República.

A fala de um Promotor de Justiça aposentado permite aferir esse inconstitucional redirecionamento do Ministério Público. Os seguintes trechos de uma entrevista concedida por Roberto Tardelli afastam qualquer tentativa de desqualificar eventual crítica:

“Qual foi a gota d’água para sua saída? Um promotor chegou e disse que me daria porrada se eu desse parecer contra o caso dele. Como procurador, de cada dez pareceres que eu dava, oito eram contra o MP. O caminho que o MP está trilhando me desagrada faz tempo e, como eu me colocava contra isso, passei a desagradar muita gente. Quando esse cara veio falar, eu pensei: ‘Não preciso ouvir esse tipo de coisa. Chega.’

Que trilha é essa? O MP está se tornando o ‘Tea Party’. Há vinte anos, a instituição era muito diferente. Achávamos que seríamos ombudsman da sociedade. Viramos tutores do povo. Quer dizer, o MP virou. A instituição recepciona gente que vem para declarar guerra contra o crime. Virou o Ministério Público do inimigo. Eu me sentia um doido pregando na Praça da Sé.

Como isso aconteceu? Criamos duas sociedades. A Sociedade Brasileira do Plano de Saúde e a Sociedade Brasileira do SUS. A da escola privada e a da escola pública. Uma não conhece a outra. O MP é de uma sociedade e não entende a outra porque nunca conviveu com ela. Quando você não conhece uma coisa, você a teme. A ignorância, num sentido social, produz o inimigo. Em nome do discurso contra a impunidade, justifica-se tudo. A impunidade não é a mãe de todos os males. É consequência de uma sociedade que está se fragmentando.”

E que não se repute como um posicionamento crítico isolado, pois, ao tratar das “10 medidas contra a corrupção”, Lênio Luiz Streck discorreu no mesmo sentido, isto é, da perda de rumo ministerial:

“Quando eu era pequeno, tinha um menino que não jogava muito bem, mas era o dono da bola. Quando não conseguia ganhar, pegava a bola e ia embora. Pois o Ministério Público — instituição à qual pertenci, com muita honra, durante 28 anos, sempre acreditando em seu papel de guardião o Estado Democrático — agora quer pegar a bola ou mudar as regras. Parece que não está gostando ‘do jogo’. Penso que isso é muito feio, para usar as palavras que usávamos para criticar o menino-dono-da-bola.

Com efeito, leio que o Ministério Público, na linha do Poder Executivo, acha que o problema do combate à corrupção é a deficiência das leis. Simples assim. Não acredita na Constituição. Nem o Poder Executivo e nem o MP parecem acreditar nas regras do jogo. Como parecem estar perdendo a luta contra o crime — isso está implícito nos discursos — propõem mudar as regras. Querem regras mais fáceis…para o MP. E para a Polícia. Pouco importa o que diz a Constituição.”

Vale dizer, mesmo diante de transparecer a figura do chato – do “cri cri” –, o verdadeiro Defensor Público não menospreza o devido processo legal, não abandona as garantias fundamentais, mesmo quando isso possa parecer politicamente sedutor, quer seja para não estragar a boa convivência com os demais atores jurídicos, quer seja para sufocar eventual posicionamento crítico e que materialize uma possível oposição interna aos interesses daqueles que se encontram gerindo a sua instituição. Maldito seja o Defensor Público que se verga por esses interesses! Eis um embuste que é remunerado pela sociedade que não suporta mais a alta carga tributária.

Mas, não é por meio do cumprimento da Constituição da República que se poderá provar uma possível humanidade do Defensor Público. É necessário aprofundar a análise e adotar uma premissa bem clara, qual seja, o Defensor Público não pode se considerar um ser superior ao seu defendido ou sobrenatural, sendo esta última hipótese própria daqueles que adotam um modelo messiânico de atuação. E é justamente por essa razão que não há qualquer espaço para que surja a “defensorite”.

Nesse momento, oportuna se mostra a lição de Lídia Reis de Almeida Prado, que trata da juizite nos termos transcritos abaixo e que serviu de paralelo para a construção da categoria “defensorite” nos seguintes termos:

“O aparecimento do ‘desejo de poder’, que, às vezes, assalta os juízes, pode ocorrer como a expressão da tentativa de recompor o arquétipo cindido. Tal fenômeno costuma ocorrer entre alguns julgadores neófitos, sendo conhecido como ‘juizite’, isto é, a tendência à soberba, à arrogância, ao complexo de autoridade. Esse problema é agravado porque a psique coletiva reforça o que ocorre no plano individual, uma vez que aos juízes se outorga autoridade”.

Como prova da humanidade do Defensor Público, não se pode desprezar o fato de que a miséria que o esbofeteia em cada atendimento o faz, ou deveria fazer, sofrer. E que não se reduza esse conceito de miséria à carência de recursos econômicos, até porque talvez seja essa a menos dolorosa desdita com que o Defensor Público tenha que lidar. Muito pior é o infortúnio decorrente da falta de perspectiva, quando não uma naturalização de que a cidadania admite diversos graus. Essa possibilidade de sofrimento pode, inclusive, fazer o Defensor Público adoecer.

Por outro lado, a humanidade no exercício da atividade defensorial pode ser constatada na satisfação de ver seu defendido absolvido após uma extenuante sessão do Tribunal do Júri. O som da liberdade, que é materializado com a soltura dos grilhões, talvez seja uma das melhores melodias que este servidor pode ouvir. E como narrar o prazer em ver a felicidade de uma criança, que, após realizar um exame genético, descobre que possui um pai e que seu registro não constará mais lacunas que tanto o envergonhavam?

A capacidade de se colocar no lugar do outro e, por meio da técnica jurídica, buscar soluções para os mais diversos problemas é a maior prova de que o Defensor Público é um ser humano.

É por meio da dualidade composta pelo sofrimento e pela alegria que se pode ter a certeza de que o Defensor Público pode evitar a defensorite. Se ela não estiver presente, garanto que a escolha do concurso foi equivocada e ainda há tempo para pensar em novos rumos ou, o pior, então é chegado o momento de uma reflexão mais profunda sobre o conceito de humanidade adotado.

  • *Eduardo Januário Newton é Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010). Mestre em direito pela UNESA.