Análise

Mauro Santayana: a Polícia Militar e o controle da sociedade

Se com o mínimo de controle existente os maus policiais se envolvem em estupros, tortura, extorsão, roubo etc., o que não farão sob um código mais brando, como quer um projeto na Assembleia do RJ

Rafael Andrade/Folhapress

Protesto em São Gonçalo (RJ), onde trabalhava a juíza Patricia Acioli, morta em agosto de 2011, dias antes de emitir ordem de prisão contra policiais

Patricia Acioli e Patricia Amiero. São esses dois nomes que nos vêm, primeiro à lembrança, no momento em que tramita na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, lei que pretende modificar o código disciplinar da Polícia Militar e dos Bombeiros, para tornar mais brandas a punição a membros dessas corporações que cometam crimes e infrações disciplinares.

As duas Patrícias são nomes emblemáticos, porque, ao contrário do que pensa quem acha que a PM só mata bandido, pertencem a uma extensa lista de cidadãos comuns, trabalhadores, formados em universidade, de classe média, que se tornaram vítimas da violência, no Rio de Janeiro, nos últimos anos.

Ressalte-se sua condição social, não porque façamos alguma distinção entre as vítimas do asfalto e as da periferia. Patrícia Acioli, juíza, morreu porque investigava crimes de policiais bandidos. Patricia Amiero, engenheira, porque cruzou com uma rádio-patrulha de madrugada, nas ruas do Rio de Janeiro. Uma situação que ninguém enfrenta sem medo, mesmo aqueles que acreditam – eventualmente – que a polícia tem o direito de matar sumariamente suspeitos.

Com os controles e a legislação atual, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão vinculado a Secretaria de Segurança do Estado do Rio, mais de 10 mil pessoas foram mortas em confronto com a polícia entre 2001 e 2011. Na imensa maioria dos casos não há como provar que houve resistência, e em mais de 500 deles, investigados em determinado período, só um chegou aos tribunais.

Essa situação, que dá à PM do Rio de Janeiro o duvidoso título de polícia que mais mata no mundo – e fez a OAB lançar a campanha “Desaparecidos da Democracia – Pessoas reais, Vítimas invisíveis” – não resolveu absolutamente nada do ponto de vista da segurança do cidadão. No mesmo período, os crimes aumentaram brutalmente, e também a sensação de insegurança.

Se, com o mínimo de controle existente – feito com corregedoria interna – e com investigações não divulgadas pela imprensa, maus policiais se envolvem em estupros, tortura, associação com o tráfico, extorsão, roubo etc., o que eles não farão, se, como propõe a nova lei:

– For atenuada a “hierarquia disciplinar”, com a “flexibilização” das punições do dia a dia, como atrasos.
– For eliminada a regra que suspende o pagamento de salários a PMS aposentados e reformados que pratiquem crimes
– Se garantir o direito de opinião aos militares nas redes sociais – permitindo o questionamento da autoridade pública, a apologia à quebra de disciplina, etc.

A intenção, segundo os autores é “evitar que a tropa fique desmotivada para agir”, também nas manifestações públicas, e dar mais liberdade para a realização de suas funções.

Ora, o mau PM que mata um juiz, um promotor, uma engenheira a caminho de casa e oculta seu cadáver, também mata, covardemente, um sargento, um tenente, um capitão, um coronel de quem estiver sob o comando ou que esteja tentando mantê-lo sob controle. O desrespeito à lei não é condicional nem seletivo. Quando um policial atravessa a linha que o separa da obediência – que deve, como agente do estado – a seus superiores, à hierarquia, à sociedade, não existem limites ao que ele pode fazer quando mergulha no crime e na marginalidade.

Como, já em princípio é letal, e armada, o que a polícia necessita é de mais controle da sociedade e não o contrário.

O Rio e os outros estados carecem é de uma Polícia Militar cada vez mais profissional e bem preparada, formada, com foco na cidadania, nas melhores universidades, que aja como braço do Judiciário e sob o Império da Lei.

Uma polícia em que o soldado obedeça a seus superiores, à Constituição, e ao poder civil, que é conferido a quem de direito pelo voto sagrado da maioria dos cidadãos.

Uma polícia que trabalhe mais com a inteligência e menos com o cassetete.

Que use o taser elétrico para imobilizar o suspeito e não como instrumento de tortura.

Que aja com mais intuição e malícia – no bom sentido – do que com um saco plástico e uma gominha no bolso, para asfixiar prisioneiros desarmados.

Que trabalhe mais com câmeras ocultas, infiltração e disfarce, do que com drogas e armas apreendidas, com numeração raspada, para justificar a prisão arbitrária ou o auto de resistência seguido de morte.

Uma polícia inteligente, de bom nível, como é a maioria da PMERJ, hoje, e não como alguns de seus membros e ex-membros envolvidos com a milícia bandida que ocupa e extorque tantas comunidades e regiões do Rio de Janeiro.

Sob regime especial de proteção de testemunhas – depondo, se possível, com máscaras e aos cuidados da Polícia Federal – seria importante que os deputados da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro ouvissem, além dos parentes e amigos das vítimas citadas no início do texto, as policiais que testemunharam, indiretamente, a tortura e morte de Amarildo de Souza, no contêiner da UPP da Rocinha no dia 14 de julho – antes de votar esse projeto.

Elas pertencem à Corporação. E estão tão apavoradas quanto qualquer cidadão que tivesse presenciado um crime de tortura seguida de homicídio e fosse, em seguida, pressionado e ameaçado para esconder o que viu.

Cabe perguntar a elas – dignas policiais militares do Rio de Janeiro – se concordariam que os envolvidos continuassem a receber seus salários, ou em dar mais poder e liberdade de ação a esse tipo de “colegas” para fazer seu “trabalho”.