Nova mentalidade

Futuro governo deverá adotar justiça restaurativa para enfrentar a política de ódio

Processo que envolve o diálogo com as forças repressivas poderá contribuir para emergir uma nova consciência, com base que a sociedade deve ser protegida

Fabiano Rocha / Divulgação
Fabiano Rocha / Divulgação
Chacina na favela do Jacarezinho em maio de 2021 deixou 25 mortos

Um novo governo do Brasil, que venha a assumir a partir de 1º de janeiro de 2023, enfrentará muitos desafios, tendo em vista a destruição promovida em diversos campos. Porém, um dos piores problemas a serem enfrentados é o ódio social escancarado que assola o país, herança a ser deixada pelo atual ocupante da Presidência da República, habituado a dirigir-se à sociedade brasileira apontando uma arma, que simboliza a morte.

Em decorrência disso, deverá ser implementada imediatamente uma política de governo que promova o diálogo, a fim de estabelecer o equilíbrio das forças políticas e sociais no país, totalmente desmantelado pelo atual governo, que, em sua visão doentia, estabeleceu como seus lemas os valores da última ditadura de 1964-1985, incentivando a violência e a repressão policial militar sem limites e desrespeitando até mesmo a decisão do Supremo Tribunal Federal na ação de descumprimento fundamental 635 (ADPF das favelas).

Infelizmente, é importante registrar que, apenas entre maio de 2021 e julho de 2022, num raio de menos de sete quilômetros que abrange as comunidades do Jacarezinho, Vila Cruzeiro e Morro do Alemão, na Cidade do Rio de Janeiro, ocorreram três chacinas com mais de 60 negros ou pardos mortos, em decorrência da política de ódio implantada a partir de 1º de janeiro de 2019 pelo atual presidente da República.

A polícia, a serviço de um Estado controlado por uma classe dominante cruel, é incentivada a promover a matança do maior número de pessoas, e, entre estas, até mesmo de crianças, idosos e mulheres, o que não se assiste com regularidade nem em uma guerra.

Ocorre que a guerra que se trava aqui é contra as vítimas da pobreza periférica e subalterna, integrantes de grupos sociais inteiramente desassistidos de quaisquer direitos fundamentais e essenciais à vida, assim mantidos ao longo de muitas e muitas décadas.

Essa é origem da guerra que todos os dias ceifa as vidas, principalmente, de cidadãos jovens, pretos e pobres, na sua grande maioria, mas também vitima policiais, paradoxalmente oriundos dessas mesmas camadas historicamente subjugadas, transformados em braços armados da classe dominante contra seus iguais, não para combater a criminalidade, mas sim para impor o conformismo diante das desigualdades e estabelecer controle social.

Desonestidade intelectual

Há quem afirme, de modo indevido e com desonestidade intelectual, que os brasileiros são preguiçosos, como herança dos povos indígenas, e malandros, como herança dos negros escravizados. Isso é repetido sistematicamente em livros, jornais e meios de comunicação social, sendo esta mentira assimilada por muitos indivíduos pobres, que apenas reproduzem, sem questionar, o que lhes dizem, sendo assim mantidos na ignorância.

A repetição constante dessas falsidades culturais tem o objetivo de marginalizar a população, para mantê-la em uma posição de inferioridade e subalternidade, ainda colonial em pleno século 21, de modo a justificar toda a violência estatal que recai sobre ela, a exemplo do que ocorreu nos massacres e chacinas de Vigário Geral, Acari, Parada de Lucas, Candelária, Eldorado dos Carajás, Paraisópolis, Jacarezinho, Vila Cruzeiro, Morro do Alemão etc., todos perpetrados por forças militares contra o seu próprio povo.

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A classe dominante promove, desde sempre, um constante apagamento da memória nacional, ao mesmo tempo em que procura exaltar como heróis homens que violentaram e mataram nossa população no passado; os mesmos que, nos dias de hoje, promovem o extermínio da juventude das periferias e comunidades faveladas, dos camponeses, quilombolas e grupos indígenas que lutam pela manutenção da posse de suas terras ancestrais e preservação da sua cultura.

Este proposital e constante apagamento da memória permite que pessoas nefastas, como o ocupante da presidência, naturalizem o racismo e promovam o ódio e a violação à Constituição, que estabelece que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.

Política nacional

Nesse cenário, o novo governo que virá – assim esperamos, para a preservação do Brasil como estado nação – entre os muitos desafios a enfrentar, deverá implantar uma política nacional de justiça restaurativa, que permita o diálogo permanente, baseado no objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de se construir uma sociedade livre, justa e solidária e de promover o bem de todos, sem quaisquer preconceitos e discriminações.

Esse processo de justiça restaurativa constitui o caminho para promover a reeducação da sociedade como um todo, podendo ser implementado por meio de ampla política de comunicação social e devendo contar, principalmente, com a participação de todas as forças repressivas, para incentivar a formação de uma nova mentalidade e estabelecer o necessário entendimento de que a população – formadora do Estado e titular final de todas as suas riquezas – é para ser assistida e protegida, e não assassinada, como tem sido feito ao longo da História do país. 

Entre as muitas ações a serem postas em prática nessa caminhada, é urgente que comecemos a trabalhar a construção de uma política permanente de preservação da memória, para que o efetivo conhecimento das nossas muitas mazelas, tanto do passado quanto do presente, nos traga verdadeira compreensão, a fim de que nunca mais se repitam no Brasil.


Jorge Folena é advogado especialista em Direito Constitucional, Administrativo, Tributário e Civil