Luta contra o preconceito

Juventudes periféricas e funk: a criminalização de um estilo musical e movimento cultural

Criminalização do funk se evidencia nas perseguições a funkeiros e MCs, um processo que produz vítimas entre a juventude negra e periférica

Matheus Souza Dafi
Matheus Souza Dafi
Criminalização do funk se evidencia nos bailes e nas perseguições a funkeiros e MCs que vitimizam a juventude negra e periférica

Para além de um estilo musical produzido e consumido pela juventude periférica, o funk é um movimento cultural que influencia diretamente no modo de vida e construção da identidade dessa juventude (ARAÚJO, 2018). Apesar de ser parte importante do cotidiano dessa população, a criminalização do funk se evidencia nos bailes e nas perseguições a funkeiros e MCs que vitimizam a juventude negra e periférica. Se hoje funk e juventude são termos indissociáveis, isso pode ser relacionado, por um lado, à potência de identificação, fortalecimento da autoestima e possibilidades de futuro que o movimento oferece, e por outro, às violências e opressões que atravessam o cotidiano da juventude funkeira.

Hoje o funk é presente em diversos territórios, mas o começo da sua história está ligado ao Rio de Janeiro. No final da década de 1980, o funk carioca era caracterizado por sua batida e ritmo marcantes, influenciados pelo samba brasileiro e pelas letras em inglês do funk norte-americano. O estilo musical passou por um processo de nacionalização, se disseminou e fez sucesso em diversas vertentes. Para mencionar algumas, citamos o funk ostentação, o chamado funk putaria, o funk proibidão, o funk melodia e o funk consciente.

Thiago Torres faz uma relação direta entre as vertentes do funk e as conjunturas sociais e econômicas do país[1]. O funk ostentação teria se popularizado nos momentos de crescimento do poder de consumo das periferias, enquanto o funk consciente teria ganhado destaque com as crises dos últimos anos, com músicas que contêm teor crítico e de denúncia da realidade do país[2].

Responsabilização indevida

As letras passaram a retratar também a realidade das periferias, incitando acusações de que o funk teria como objetivo fazer apologia ao crime. Os organizadores e frequentadores dos bailes passaram a sofrer perseguições por suposta associação com uso e venda de drogas, desvio de comportamento infantil, arrastões, incitação à violência. A proibição dos bailes em clubes no Rio de Janeiro nos anos 1990, por exemplo, decorreu principalmente da repercussão midiática dos arrastões na Praia do Arpoador em 1992.

A responsabilidade pelos casos foi atribuída aos jovens frequentadores dos bailes. Isso culminou em normas e medidas judiciais que interditaram a realização de bailes em clubes e incitaram a realização dos bailes de comunidade em territórios periféricos. Essa associação entre o movimento funk e condutas violentas criminaliza não apenas as músicas, mas o público. Que é majoritariamente jovem, preto, periférico, força motriz da cultura funk.

Sinhoretto et al. (2014) demonstram como a abordagem policial é pautada por valores e moralidades que incidem na seleção de suspeitos que, na maioria das vezes, são jovens negros. As vestimentas e as corporeidades influenciam diretamente nas chances de um jovem ser abordado. No Rio de Janeiro, por exemplo, esse “tipo social criminoso” é diretamente associado à figura e estereótipo de um jovem funkeiro. Essa criminalização acarreta em um aumento da atuação policial em bailes funks, que por vezes culmina em chacinas.

Foi o caso da chacina de Paraisópolis (São Paulo), no dia 1° de dezembro de 2019, quando nove jovens foram mortos durante uma “Operação Pancadão” no baile. Outro caso ocorreu no dia 11 de julho de 2016, em um baile funk em São Miguel Paulista, também em São Paulo. Três jovens morreram durante patrulhamento de policiais militares no local. Os PMs foram investigados pelo Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) sob suspeita de integrarem um grupo de extermínio que teria como alvo frequentadores de bailes funk.

Apesar da disseminação do funk – segundo gênero musical mais escutado no país em 2020, segundo o Spotify – e da potência de um estilo musical que promove do lazer à crítica social, os sujeitos que constroem esse movimento são vítimas de múltiplas violências. Da proibição de bailes a jovens que são abordados sem justificativa, encarcerados, feridos ou assassinados pela polícia, ou MCs que são investigados em operações que associam o sucesso do funk ao tráfico de drogas.

A criminalização do funk cerceia a juventude negra e periférica cotidianamente.

Referências:

ARAÚJO, Nicole. Juventude e resistência: o funk como forma de expressão dos(das) jovens da periferia. Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2018

CYMROT, Danilo. A criminalização do funk sob a perspectiva da teoria crítica. Dissertação (mestrado), Universidade de São Paulo, 2011.

SINHORETTO et al. A filtragem racial na seleção policial de suspeitos: segurança pública e relações raciais – – Coleção Pensando a Segurança vol 5, 2014.


[1] Ver mais em: https://www.youtube.com/watch?v=y8vs5FrpMww&t=1294s

[2] Para acessar essa discussão, ver  http://periferiaemmovimento.com.br/funkconsciente/


Sofia Helena Monteiro de Toledo – assistente de pesquisa do Projeto Reconexão Periferias e do Núcleo de Justiça Racial e Direito (FGV) e estudante de Ciências Sociais na USP.

Victoria Lustosa Braga – assistente de pesquisa do Projeto Reconexão Periferias, bacharela em Gestão de Políticas Públicas pela USP e mestranda em Ciência Política pela mesma instituição.

Artigos desta seção não necessariamente expressam opinião da RBA