Rescaldo

Rio2016: organização, desempenho, orgulho ferido e preconceito

Entre muitas polêmicas que marcaram os Jogos, caso da corredora Caster Semenya é a mais duradoura, entre atletas e imprensa

Getty Images / COI

Semenya, corredora sul-africana cujo desempenho na Rio2016 provocou preconceito de gênero e de raça

Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro entraram para o rol dos melhor organizados, de relativamente baixo custo, mas mais polêmicos. As polêmicas foram várias. Começaram, como já era de se esperar, com a já tradicional desqualificação do nosso país como incapaz de organizar um evento deste porte. Esta ladainha, que já ouvíramos quando da Copa do Mundo de Futebol em 2014, se repetiu tanto na nossa mídia anti-governo e anti-nacional, quanto na mídia estrangeira. Foi desmentida pelos fatos, e boa parte da mídia reconheceu o sucesso dos jogos, apesar de, como é natural, ter havido alguns problemas. Exceção: a mídia alemã.

Embora terminando em 5º lugar (quando em Londres ficara em sexto) no quadro de medalhas, o desempenho dos e das atletas alemãs foi considerado como abaixo do esperado. Seguiu-se o choro contra tudo e contra todos: organização, torcida, clima (ora descrito como muito quente, ora como muito frio…) etc. Houve artigos que qualificaram os Jogos do Rio como os mais “anárquicos”, “caóticos” da história, e os elogios do Comitê Olímpico Internacional (COI) à organização e ao país como “cínicos”…

Outra polêmica de vulto foi a provocada pela decisão do COI de eliminar dos jogos quase 100 atletas russos e russas. Apesar disto, a Rússia chegou em quarto lugar na classificação, um feito e tanto. Agora há outra polêmica, com a proibição total de participação da Rússia nos Jogos Paralímpicos de setembro, também no Rio.

Houve polêmicas políticas, com as vaias dirigidas ao interino Temer, sua ausência no encerramento – deixando o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe pendurado no pincel –, a proibição inicial de protestos contra o golpe de estado em curso no Brasil, a tentativa de “apagar” o mérito de Lula e Dilma na conquista e organização dos jogos, bem como no sucesso brasileiro de sair da 22ª posição em 2012 para a de 13º em 2016… Enfim, um mar de polêmicas.

Mas a mais duradoura, que segue ainda dando o que falar, se refere à vitória da atleta su-lafricana Caster Semenya nos 800 metros. Atletas (pelo menos uma britânica e uma canadense) se recusaram a cumprimenta-la logo depois da prova. As reclamações (e também as defesas da atleta) continuam presentes na mídia até hoje.

Motivo: o nível alto de testosterona da atleta é considerado por muitos como “incompatível” com a feminilidade. A testosterona é uma das responsáveis pela massa muscular e a libido masculina, dentre outras qualidades (inclusive o combate ao estresse e à depressão). Até 2015 a Associação Atlética Internacional proibia a participação em provas de mulheres cujo nível de testosterona fosse semelhante ao dos homens (que é comumente maior do que o das pessoas do sexo feminino). Porém, naquele ano o Tribunal Desportivo Internacional aceitou o recurso de uma atleta indiana e cancelou a proibição, alegando ausência de comprovação científica, uma vez que o nível de testosterona varia muito tanto em homens quanto em mulheres.

Os defensores da atleta sul-africana alegam que há um elemento de racismo nas reclamações. Todas as e todos os reclamantes são brancos. E o pódio dos 800 metros, além de Caster, contou com Francine Niyonsaha, do Burundi (prata) e Margaret Wambui, do Quênia (bronze), ambas também da África subsaariana. As atletas que não chegaram ao pódio e que não se conformaram alegam que contra estas africanas, sobretudo Caster, “elas não têm chance”.

Outros defensores de Caster dizem que esta é que deveria se sentir prejudicada, lembrando que a África do Sul investiu o equivalente a 1,9 milhão de libras na preparação de seus atletas para esta Olimpíada, enquanto o Reino Unido (onde o número de atletas e jornalistas reclamando foi maior) investiu 245 milhões, quase 145 vezes mais.

Não há qualquer prova, sequer suspeita de que o alto nível de testosterona da atleta dependa da ingestão de drogas, sendo da sua natureza. Exames para confirmar sua feminilidade foram feitos em pelo menos duas ocasiões.

Assim, penso mesmo que não há o que reclamar. Mutatis mutandis, seria o mesmo que proibir os e as atletas do Quênia e da Etiópia de participar da Maratona porque em média eles têm pernas maiores do que as dos outros concorrentes.