Gás pimenta não é colírio

Gás pimenta é um perigo à vista. Muito mais do que se pensa à primeira vista. Chamou-me a atenção a foto no alto da página desta quinta-feira (7) da Rede […]

Gás pimenta é um perigo à vista. Muito mais do que se pensa à primeira vista.

Chamou-me a atenção a foto no alto da página desta quinta-feira (7) da Rede Brasil Atual: o PM joga gás pimenta nos olhos do manifestante rendido, de mãos levantadas. Ao lado, uma moça tenta se proteger com um lenço (Ato contra aumento da tarifa de ônibus em São Paulo acaba em confusão).

Confesso logo: nunca levei uma pimentada dessas no rosto. Sou do tempo da combinação do gás lacrimogêneo com cassetetes de madeira. Cheguei até a pegar o tempo em que os cassetetes da polícia eram de borracha e mais curtos, e os policiais não usavam escudo. Deixavam vergões enormes na pele.

O gás pimenta foi introduzido nas manifestações, ou melhor, contra elas, no mundo inteiro, a partir dos anos 1990. Baseia-se num produto chamado de “capsaicina”, encontrado em pimentas vermelhas ou do tipo cayena, ou ainda na páprica e no pimentão. Este produto é a base para um delicioso e picante prato muito comum em festas na Europa, no Estados Unidos e nas Américas, o chamado “chili com carne”, uma mistura de carne moída, feijões do tipo mexicano, o “pó de chili”, além de outros temperos, como pimenta-do-reino, alho, orégano etc. Dependendo do caso, pode ser uma bomba de efeito moral a enfogueirar a boca. Além disso o chili (palavra que vem da língua Náhuatl, dos aztecas, que nos deu também outras como abacate, chocolate, coiote, tomate; dizem que até chiclete tem a ver com ela) também é largamente usado na comida indiana.

Mas isso aqui não é um livro nem um blog de receitas. Nada contra que seja, penso até um dia discutir coisas de culinária. Hoje o assunto é outro. Acontece que um pesquisador norte-americano, John Mendelson, do Califórnia Medical Center, de São Francisco, encontrou evidências suficientes de que uma associação entre o uso do gás pimenta e drogas de uso ilícito (como o ecstasy, a maconha e sobretudo a cocaína) ou de uso terapêutico, como sedativos, pode ser fatal.

O artigo de Mendelson, que é um conceituado pesquisador sobre uso de drogas e tratamentos recomendáveis, coassinado por mais sete pesquisadores de várias universidades norte-americanas, foi publicado em 2/10/2009 na revista “Forensic Toxicology”.

A experiência do dr. Mendelson e de seus colegas foi algo cruel, mas muito eficaz e sugestiva. Consistiu em aplicar uma certa dose de cocaína em algumas dezenas de camundongos; e em outros tantos, uma combinação de cocaína com “óleo-resina capsicum”, ou capsaicina. 24 horas depois alguns poucos camundongos que tinham recebido só cocaína estavam mortos. Mas todos os que tinham recebido a mistura tinham passado desta para a pior.

O motivo da experiência foi o crescente uso do gás pimenta por parte da polícia, no mundo inteiro, para tentar controlar indivíduos drogados e/ou descontrolados. Um caso dramático, relatado recentemente pela revista Der Spiegel, foi  o de um conturbado homem de 42 anos, que corria nu pelas ruas de Munique em julho do ano passado, gritando que era Deus. Os policiais que vieram atender a ocorrência jogaram-lhe gás pimenta no rosto, sem efeito aparente. Assim mesmo conseguiram dominá-lo. Mas poucas horas depois o homem entrou em coma e morreu dali a dois dias. A autópsia apontou uma overdose de cocaína como causa mortis. Mas a publicação da pesquisa de Mendelson pode possibilitar a reabertura do caso.

 

Há diferentes relatos, de diferentes partes do mundo, sobre essa conjugação – que até então era tida como puramente ocasional – de gás pimenta e drogas. Há relatos de mortes ocorridas quando o gás pimenta foi usado contra doentes mentais descontrolados, que estavam submetidos a altas doses de sedativos.

É certo que até agora tudo está ainda no campo das hipóteses. Mas elas são consistentes e merecem mais investigação. Na Califórnia do dr. Mendelson foram estudados 63 casos de mortes onde havia envolvimento de uso de drogas ou sedativos e gás pimenta. Em apenas dois dos casos o Departamento de Justiça concluiu taxativamente que o uso do gás fizera parte da causa mortis. É pouco, mas é muito: o suficiente para por as barbas – ou melhor – os olhos de molho. Sem chili.