O humor bipolar do capitalismo europeu.

Euforia e depressão: os sintomas do humor bipolar são… Essa paródia do famoso e macunaímico dito brasileiro (muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são) ilustra a auto-visão […]

Euforia e depressão: os sintomas do humor bipolar são…

Essa paródia do famoso e macunaímico dito brasileiro (muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são) ilustra a auto-visão (com alta e baixa estimas misturadas) dos ‘pundits’ (em inglês; traduzindo literalmente, ‘os que exibem a sua sabedoria’) europeus em torno do seu capitalismo. Esse termo foi consagrado pelo economista e premio Nobel de economia Paul Krugman em referência aos comentaristas ortodoxos da situação econômica mundial.

Neste fim de semana que se inicia essa estrutura bipolar recebeu reforço considerável: três grandes institutos de pesquisa alemães (de Munique, Halle e Kiel), reunidos em “think tank”, prepararam relatório, cujan divulgação oficial será feita na próxima quinta, anunciando um futuro róseo para a economia alemã em meio à débâcle da Europa como um todo. Prevê o relatório um aumento no PIB alemão de 0,9% em 2012 e 2% em 2013, com mais 500 mil empregos neste ano e 300 mil no próximo. Além disso, a relação dívida pública/PIB, hoje em torno de 83,5%, cairia em 0,2% no mesmo período, devido a maior arrecadação de impostos com o aquecimento econômico.

Essa previsão é significativamente mais otimista que a do FMI: 0,6% neste ano e 1,5% de crescimento no próximo.

Essas previsões vêm alimentando uma relativa euforia do que já chamei “confiança nas virtudes teologais do capitalismo alemão”. Essas virtudes teologais (da ideologia neo-liberal, na verdade, a partir dos discípulos do economista austríaco von Hayek) fizeram com que a Alemanha, exemplo do ‘espírito do Norte’, aplicassem as reformas duras mas necessárias para disciplinar a sua casa: congelamento de salários, cortes nos investimentos públicos, e nas políticas sociais, diminuição do seguro desemprego, aumento da idade para a aposentadoria e redução das pensões. Ao contrário, os países do ‘perdulário Sul’ da Europa não as aplicaram a tempo, e hoje, depois da bancarrota, estão tendo que aplicá-las a ferro e fogo.

Com tal visão apregoada na mídia – dentro e fora da Alemanha – (euforia para o Norte, depressão para o Sul) se atribui um verniz moral à crise européia, um verniz de tradição luterana, quiçá calvinista, e interpretação weberiana: trabalha, poupa, não ostenta, não te entrega ao ócio, e serás recompensado, nesta e na outra vida. Nada contra tais virtudes, mas sim contra a sua manipulação ideológica, que termina por mascarar a natureza multifacetada da crise, que passa a ser atribuída apenas às improbidades administrativas do Sul.

Essa manipulação ajuda a ocultar a parte das raízes da crise que que atinge a União Européia e a Zona do Euro, em particular, que está presa à desregulamentação do sistema fincaneiro. A chamada crise das dívidas públicas é apenas a fachada – ou a ponta do iceberg – de uma crise do sistema financeiro como um todo. Se países tomaram emprestado o que não podiam, bancos emprestaram o que não deviam, e tornaram-se ameaçados pela inadimplência de seus próprios devedores. A via da “austeridade”, por si só considerada e aplicada unilateralmente, só tem aprofundado a crise dos que estão no fundo da crise pela recessão que impõe. A economia alemã se beneficia disso porque a competitividade dos outros países foi para o brejo, e como os investidores em euro estão na contingência de aplicar seus recursos nessa moeda, que está desvalorizada perante as outras, eles terminam por buscar o navio que lhes parece mais seguro. A Alemanha paga relativamente pouco para rolar suas dívidas públicas, enquanto os países adernados continuam pagando juros altíssimos.

O sistema financeiro, agora, está se reestruturando, às custas de bilhões (mais exatamente, um trilhão) de euros repassados pelo Banco Central Europeu sob diversas formas, que vão desde empréstimos a juros baixíssimos a compra de letras dos países endividados para que estes possam pagar os compromissos vincendos. A esse trilhão de euros vêm se juntar os quase 500 bilhões de dólares que os países do G20 acabam de garantir ao fundo de proteção da moeda européia, via FMI (com a promessa de que o sistema de voto no organismo internacional vai mudar para melhor).

Nessa sua reestruturação, o sistema financeiro europeu está reestrutrando os estados e o alcance da cidadania, podando os poderes dos primeiros e a efeitvidade da segunda, além de comprometer a democracia pela alienação relativa das populações concernidas já nào direi do centro, mas até mesmo da periferia das decisões. Entregue a seu apetite, pretende transformar o FMI numa espécie de Agência para o Financiamento do Atlântico Norte, parafraseando observação de Paulo Nogueira Batista, representante do Brasil e de mais 8 países latino-americanos no Conselho do FMI.

O ideal desse processo será o redesenho do estado do bem estar social europeu como estado do bem estar social dos bancos e da banca financeira como um todo. E também continuar condicionando qualquer recuperação financeira do continente ao privilégio da manutenção da banca financeira.

Num estudo interessante de um grupo da Universidade de Manchester, chamado “Deep Stall”, ele sugere comparar a presente situação à do vôo de um avião. Neste, todos – passageiros, pilotos, comissários, a companhia aérea, o pessoal das torres de comando – estão comprometidos em manter o avião no ar. Na situação da crise financeira, não. O sistema financeiro – que põe combustível no tanque do “aparelho” – não está comprometido com o vôo. Se compromisso primeiro é manter lucrativo para si mesmo o preço do combustível, que ele injeta no tanque do aparelho para permitir seu vôo. Se aquele preço não lhe for conveniente, ele deixa o avião cair – desde que obtenha outro aparelho que compre seu “produto” – ou que o estado a que o avião pertence lhe dê cobertura para não ter prejuízo em qualquer hipótese – inclusive a da queda.

Continuando nas paráfrases criativas e livres, poderíamos imitar um personagem do “Alice no País das Maravilhas” (o Humpty-Dumpty), dizendo que o problema não é o de que as palavras possam ter vários significados (por exemplo, “austeridade”, “euro”, “crise”, etc.), mas sim saber quem manda nelas.

Entretanto, cresce, mesmo entre economistas ortodoxos, a certeza de que, se nada for feito para regular quem manda no preço do combustível, tudo – não só os aviões em vôo – vai pelos ares, mais cedo ou mais tarde. Inclusive quem agora, aparentemente, voa em céu de brigadeiro, como a aeronave alemã.