Recebida em situações precárias, a tribo dos pulseiras vermelhas deixou sua marca

Movimentos viram estrutura ruim cedida pelo poder público como meio de enfraquecer as organizações sociais. Mesmo assim, comemoram o saldo da atuação na Rio+20 como positivo

Militantes do MST evitaram as salas sujas e se acomodaram na Passarela do Samba, onde instalaram sua própria cozinha (Fotos: Marina de Souza)

Rio de Janeiro – Banheiro químico sujo, colchão no chão frio e duro, marmita gelada e demorada, metrô lotado são algumas das lembranças que muitos ativistas de movimentos sociais de diversos pontos do país levarão de recordação do Rio de Janeiro. As condições encontradas no alojamento do Sambódromo – que recebeu público estimado em 8 mil pessoas – não foram das melhores.

Segundo o Grupo de Articulação (GA) da Cúpula dos Povos, composto por integrantes dos movimentos e criado para atuar na organização junto com o Comitê Facilitador do evento, de responsabilidade da prefeitura, o local inicialmente apresentado para receber participantes dos eventos paralelos à Rio+20 havia sido a Quinta da Boa Vista. Mas o parque foi considerado muito distante das atividades, o que criaria ainda mais dificuldades.

A alternativa de ter o Sambódromo como alojamento foi aceita mediante garantia da organização de que o local teria salas de aula limpas e estruturadas para receber os visitantes. Os organizadores argumentam, porém, que com a chegada de algumas delegações, sobretudo de indígenas, antes do período previsto – o fim de semana passado – não foi possível deixar a casa em ordem.

O índio Maiá, da etnia Tomai, chegou no dia 14 depois de quatro dias de viagem do interior do Mato Grosso ao Rio de Janeiro. “Resolvemos vir antes porque nunca tínhamos vindo e não sabíamos quanto tempo iríamos demorar. Mas tivemos autorização para isso”, contou ele, acomodado sobre o colchão fino estendido no corredor. “Quando chegamos não tinha ninguém para nos receber, estava tudo desorganizado, e não tinham limpado. O tratamento está péssimo, principalmente a alimentação. Faz quatro dias que não recebemos café da manhã e as marmitas do almoço e janta chegam atrasadas. Gastamos dinheiro para comprar quando demora demais.”

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com mais estrutura, montou uma cozinha dentro do alojamento para fornecer a alimentação aos seus integrantes. “Chegamos e tivemos de lidar com marmita atrasando. No segundo dia houve pessoas que foram comer às 2h da manhã. Então no terceiro montamos a cozinha”, explicou Paula Berusque, 31 anos, enquanto ajudava a fazer o jantar. ”Temos de atravessar todo o sambódromo, porque os banheiros e a água potável estão do outro lado. Acabamos utilizando um banheiro do prédio próximo, mas entupiu e o cano estourou molhando vários colchões, porque não tínhamos a informação de que estavam em reforma e não poderíamos usar.”

Na área de banheiros químicos, Francisca de Lima Morais, 50 anos, acabava de sair do banho. Ela veio do Rio Grande do Norte pela Marcha Mundial das Mulheres, realizada na segunda (18). “O banho foi ótimo, só não foi melhor por causa da higiene das pessoas, que deixam lixo. Mas aqui deveria ter mais lugares para jogar o lixo, principalmente, no banheiros das mulheres”, reclamou.

Logo adiante, Maria Sueli dos Santos, do Movimento Nacional de Catadores, delegação de Minas Gerais, procurava um banheiro limpo. “Infelizmente estamos nesse espaço, nessas condições, para poder reivindicar nosso direito. Então a gestão pública que está ai fala de erradicação da pobreza, aqui acontece a higienização dos pobres”, protestou.

Bola pra frente

Apesar dos problemas, alguns participantes avaliaram como bem-sucedidas as intervenções de seus movimentos na Cúpula dos Povos. ”Acho que a mobilização foi muito importante, mesmo com essas condições. Não foi a falta de estrutura que nos atrapalhou nada na hora de mostrar nossos problemas para o Brasil”, afirmou o índio Maiá.

Cristiano Sanka, 23 anos, de Guiné Bissau, veio ao Rio acompanhando um grupo da Pastoral Africana de Fortaleza (CE). E também associou um possível abatimento nos movimentos por conta das más condições enfrentadas. “A forma como as pessoas estão dormindo… elas podem já voltar doentes para casa. Estamos numa situação horrível. Mas diga para o governo que estamos bem, e vamos ficar reclamando nosso direito na Cúpula”, disse.

Além do sambódromo, foram utilizados como alojamento dos movimentos a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um Ciep (escola municipal) e uma área na Quinta da Boa Vista, na zona norte. Segundo o diretor da Cúpula dos Povos, Carlos Henrique Painel, a organização tinha uma demanda de 22 mil pessoas para acolhimento, mas foram liberados para atender 14 mil. “O governo federal disponibilizou R$ 10 milhões em maio, nosso orçamento era de R$ 12 milhões em fevereiro. Acabamos prejudicados pela demora dos recursos e pelos processos burocráticos. Além disso, os eventos no Rio de Janeiro fez o preço das coisas subirem muito. Além do orçamento reduzido, isso afetou nossa capacidade de comprar e de contratar serviços”, explicou Painel. “Mas a Secretaria Geral da Presidência, como interlocutora do governo, atendeu às demandas apresentadas”, admitiu.

No caso dos alojamentos, a negociação dos organizadores foi com o município. “A prefeitura ajudou, mas não foi uma parceria comparável, por exemplo, às do Rio Grande do Sul nas edições do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, onde governo e prefeitura tiveram papel fundamental dentro do processo. Enfim, poderia ser melhor”, afirmou o diretor.

“Podia ter sido muito melhor, mas foi muito bom para nos vermos. O Brasil é muito grande e estava aqui. É como se fosse uma tribo, a tribo das pulseiras vermelhas, que se reuniu para unir forçar e lutar. Acho que cada um, cada movimento vai voltar fortalecido para o seu estado”, disse Rita Stami, 39 anos, integrante dos grupos de Pontos de Cultura do Rio Grande do Sul.

O público acomodado no interior do Sambódromo foi identificado por pulseiras vermelhas. Com elas, podiam entrar e sair, e também usar o metrô para ir e voltar do Aterro do Flamengo, sede da Cúpula. “O Brasil é muito grande e estava aqui. É como se fosse uma tribo, a tribo das pulseiras vermelhas, que uniu forças para lutar. Acho que cada um, cada movimento, vai voltar fortalecido para o seu estado”, disse Rita.

“O perrengue que passamos aqui foi muito ruim, atrapalhou um pouco nosso foco e perdemos um pouco de energia com isso. Mas não totalmente, porque o movimento de fato está acontecendo”, celebrava a gaúcha, destacando a força do movimento indígena, do MST e dos catadores de recicláveis como exemples de organização e busca pelo debate. “Podia ter sido muito melhor, mas foi muito bom para nos vermos. O saldo é positivo.”