Whitaker provoca: “Boaventura, você quer matar o Fórum?”

Um dos fundadores do processo afirma à Rede Brasil Atual que ideia de transformar o Fórum em movimento colocaria tudo a perder

Uma velha discussão sobre o papel do Fórum Social Mundial (FSM) é se ele deve ser um espaço de movimentos ou um movimento em si. A diferença é simples e fundamental. No primeiro modelo se discute coletivamente e cada entidade define sua agenda de ações em separado. A outra proposta é de que o Fórum aja como um movimento organizado que agrega distintas correntes e é uma grande representação da sociedade civil.

Em sua carta de princípios, que até o atual momento é respeitada, o Fórum é um espaço para reflexão e, ao fim das discussões, cada movimento (ou um grupo de movimentos) pode emitir suas opiniões, desde que expresse que não fala em nome do FSM.

Esta semana, o professor da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos, propôs a criação do Fórum Social Mundial em Movimento, uma espécie de selo. Como exemplo, ele apontou que o FSM em Movimento poderia ter enviado em seu nome uma ou mais propostas para reuniões de relevo como o COP-15, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, ocorrida em dezembro último em Copenhague.

No encerramento desta primeira semana de Fórum em 2010, em Porto Alegre, um dos fundadores do processo, Chico Whitaker, rebateu a ideia de Boaventura de Sousa Santos – antes que se gerem falsas brigas, foi uma resposta sem agressividade, sem rusgas, com uma polêmica saudável. Para Whitaker, transformar o Fórum em movimento seria gerar a morte do mesmo. 

Leia a seguir a entrevista concedida à Rede Brasil Atual

RBA – Quais as discussões que surgiram aqui e que vão influenciar as discussões ao longo do ano? 

Houve aqui uma recuperação de algumas ideias que surgiram em Belém e que foram aprofundadas aqui, iluminadas. 

A primeira é a ideia do Bem Viver. É uma ideia que explodiu. Saiu de uma proposta indígena que, para muita gente, era inclusive desconhecida, apesar de estar escrita nas constituições da Bolívia e do Equador. Aqui isso ganhou relevo. Com uma proposta de uma profundidade enorme porque, no fundo, se liga à própria crítica radical do mundo que vivemos. Eles chamam isso de crise de civilização. Há quem discorde porque pense que isso que vivemos não é civilizado. De qualquer maneira, é uma crise de paradigmas. E essa proposta do Bem Viver, que é uma noção claríssima de relação humana, natureza e de que você não pode viver bem se os outros não viverem bem. Como luz para o mundo que nós queremos, foi uma iluminada muito grande.

Outra ideia que a meu ver foi debatida em vários setores é a insustentabilidade do modelo de desenvolvimento tradicional do capitalismo. Que é a ideia de puro crescimento. É preciso mudar mecanismos, mudar lógicas, e põe em questão até o modelo brasileiro, que está baseado no crescimento econômico. Para quem é isso, para onde vamos? 

Um outro ponto que foi revalorizado aqui é dos bens comuns da humanidade. Isso é muito interessante e muita gente não tem a mais remota ideia do que seja. Nós mesmos descobrimos recente. São esses bens que não podem ser mercantilizados nem privatizados. Então, a gente tem de garantir a descapitalização e a desmercantilização daqueles que já o foram e proteger outros para que estejam sempre disponíveis para todos.

Uma ideia com muita clareza foi o problema da limitação dos Estados nacionais, da luta pura e simplesmente política, pura e simplesmente partidária.

RBA – Quais foram os acertos e os erros dessa estratégia de espalhar eventos pela região metropolitana de Porto Alegre?

Tudo tem vantagens e desvantagens. Nos fóruns normalmente se faz tudo no mesmo espaço. Porque aí fica tudo mundo se vendo, muita gente discutindo, e a possibilidade de entrosamento é muito maior.

Mas a hipótese de descentralizar tem outras vantagens. Ir para sete cidades da região metropolitana de Porto Alegre fez novas discussões surgirem. Muitos painelistas que estavam aqui foram para as outras cidades e inclusive se juntou com outros fóruns.

Para o tipo de fórum como esse, que não é o Fórum Social Mundial (é um fórum regional que integra o FSM; neste fim de semana há outro em Salvador e pelo menos quatro dezenas ocorrerão ao redor do mundo até dezembro), há mais vantagens do que desvantagens.

Uma ideia que surgiu aqui, e que é óbvia, é por a moçada no centro das coisas. O Acampamento da Juventude teria de ficar mais perto. Mas também não acompanhei as tratativas de onde colocar o acampamento, e isso não é fácil. Os jovens acharam ótimo.

RBA – Tem gente que fica feliz quando o Fórum tem esse modelo descentralizado porque pode falar que foram só 30 mil pessoas, que o Fórum está acabando. O que você acha disso?

É o engano total de informação. Aliás, correu na imprensa uma informação totalmente falsa de que esse era o Fórum Social Mundial. Automaticamente, se é o FSM, e o anterior teve 150 mil, por que esse aqui teve só 30 mil? Não é o Fórum Social Mundial. 

É um fórum local. Com 30 mil pessoas, é um bruto sucesso. Quem fala isso não olha para o conjunto. Hoje, nesse painel, se você somar cada um que vai sair daqui e vai para os fóruns ao redor do mundo, vai chegar facilmente a 300 mil pessoas. É uma explosão de crescimento.

RBA – Uma provocação dentro daquela velha discussão entre espaço e movimento. O professor Boaventura de Sousa Santos propôs que se faça o FSMM, ou seja, o Fórum Social Mundial em Movimento. Como se vê essa ideia?

É um equívoco da parte dele. Parece até que ele não “pescou” qual é o princípio do Fórum. Acho até que ele pescou, mas não sei porque insiste nisso. Ele quer que o Fórum seja um protagonista político como entidade, mas fazer isso é acabar com o Fórum.

Todas as grandes internacionais que existiram no mundo acabaram por causa disso. Porque ficaram em torno do princípio da identidade. Quiseram se afirmar em suas posições e começaram a se expurgar tanto que acabaram isoladas.

O Fórum é outra coisa. É a jogada da alteridade, da diversidade, da aceitação e da valorização da diversidade.

Essa ideia do Boaventura, veja, acho ótimo que saiam coisas concretas. Mas estão saindo. Hoje, enquanto a gente fazia esse encontro, houve a Assembleia dos Movimentos Sociais, com 1.500 pessoas discutindo. Precisa passar pelo Fórum isso?

O engano que a Assembleia dos Movimentos Sociais fez durante muito tempo, e que agora já não faz mais, é fazer a assembleia deles e dizer que aquelas são as conclusões do Fórum. Não pode fazer isso. Porque as conclusões são milhares. 

O Fórum não tem de ter uma declaração final. Tem de ter 50, mas cada uma com seu conteúdo e sua forma. E cada uma será isso que o Boaventura pede, que é a sociedade em movimento. Espero que, mais cedo ou mais tarde, ele se convença disso. Ainda vou escrever muita coisa sobre isso e espero continuar a ter um diálogo com ele. Quero um diálogo pessoal para dizer: “Boaventura, pensa bem, você está querendo matar o Fórum ou expandir o Fórum? Se quiser, continua pedindo essas coisas que em um ano ele está morto”. 

RBA – Indo ao campo das ideias, no auge neoliberal era quase uma vergonha falar em outro mundo possível. Palavras como comunismo e socialismo haviam sido jogadas fora. Qual foi a participação do Fórum no resgate dessas ideias?

Houve uma época de perplexidade total no mundo diante da queda do Muro de Berlim. Noventa anos de história foram abaixo. Escreveram “o fim da história”. Agora é mercado. E O Fórum falou “opa, devagar com o andor”. Vamos recuperar o modelo. Mas o quê? Aquele modelo? Não, claro que não, tem de rever. Agora, David Harvey falou aqui que “outro comunismo é possível”. 

Na verdade, há uma recuperação da necessidade de montar modelos. Mas nunca mais montar modelos prontos e acabados que vão ser implantados de cima para baixo. A contribuição do Fórum para isso foi grande. Tomar o poder de cima para baixo e implantar um modelito de sociedade não funciona. Temos de fazer de dentro para fora, de baixo para cima, a mudança social geral. Que implica até a mudança de comportamentos pessoais.