Amazônia

Cheia recorde do rio Madeira leva a reflexão sobre hidrelétricas na Amazônia

Embora fenômeno climático andino seja visto como principal fator para isolamento do Acre e inundações em Porto Velho, quadro é agravado por Santo Antônio e Jirau, segundo pesquisadores

Avener Prado/Folhapress

Madeira alaga rodovia entre Porto Velho e Rio Branco: fenômeno inédito em cem anos de medição

Manaus – O grande volume de chuvas que causa a cheia histórica do rio Madeira, nos estados de Rondônia, Acre e Amazonas, na região Norte, é provocado pelo mesmo fenômeno que provocou falta de chuva nas regiões Central e Sudeste do país. Chamado Alta da Bolívia, é um episódio meteorológico típico do verão, que se observa em altos níveis da atmosfera, em torno de 12 km de altura. Esse é considerado o grande fator por trás da cheia inédita do rio Madeira, próximo de 20 metros, embora se considere também que as usinas hidrelétricas recém-construídas no entorno de Porto Velho estejam desempenhando o papel de agravante da situação.

Os meteorologistas Fábio Rocha e Ariane Frassoni, do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (Ceptec), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), disseram à RBA que o fenômeno se deslocou para oeste, ocasionando ventos em altos níveis da atmosfera que contribuíram para a ocorrência de grandes volumes de chuvas, principalmente na Bolívia, região bastante afetada. Os rios Beni, que nasce na Bolívia, e Madre de Dios, com nascente no Peru, são os principais formadores do Madeira.

Os impactos da cheia deverão continuar por mais tempo, mas há indicativos de que se aproxima o fim em algumas áreas atingidas. “O rio Madeira apresenta uma estabilidade, com indicativo de fim de cheia para os próximos dias. No entanto a situação de emergência deve perdurar até o fim de abril para os municípios de Porto Velho (RO) e Humaitá (AM)”, disse o superintendente do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) no Amazonas, Marco Antônio Oliveira. O CPRM possui estações de monitoramento hidrológico em diferentes pontos da região amazônica, incluindo o Madeira.

Entre o fim do ano passado e este primeiro semestre de 2014, o nível do rio que corta Rondônia bateu recordes históricos, provocando danos a populações urbanas e ribeirinhas, desabrigando milhares de famílias, interditando estradas, isolando comunidades, provocando desabastecimento nas cidades e, mais recentemente, causando doenças transmitidas por contaminação da água, como diarreias e leptospirose. Nos últimos dias, foi apontada suspeita de cólera em Porto Velho, capital de Rondônia. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) está investigando a bactéria para atestar se é do tipo que transmite o cólera.

O Ministério da Integração Nacional destinou mais de R$ 12 milhões, até o momento, para os estados de Acre, Amazonas, Pará e Rondônia. O recurso é para ajudar nas ações emergenciais dos atingidos pela cheia (confira tabela com os valores destinados para cada estado e cidades, enviada pela assessoria de comunicação do Ministério da Integração Nacional)

quadro.jpgConforme Oliveira, o volume das águas do rio Madeira, ao redor dos 60.000m3/s, tem resultado em uma elevação dos níveis do rio Amazonas abaixo da foz do Madeira, no município de Itacoatiara (AM), a 176 quilômetros de Manaus.

Essa elevação é conjuntural, segundo Oliveira. Assim que o rio Madeira voltar a normalidade, o rio Amazonas também sofrerá este efeito. “Deve-se considerar que o pico da cheia do Madeira ocorre agora e para o rio Amazonas somente em junho”, afirmou.

Reavaliação do modelo de hidrelétricas

O agravamento das consequências da cheia do Madeira também foi atribuído às duas usinas hidrelétricas, Jirau e Santo Antônio, ambas em Rondônia, devido à força das águas liberadas pelos reservatórios, atingindo e inundando comunidades e cidades nas proximidades. As empresas negam a responsabilidade.

Segundo Oliveira, as barragens de Jirau e Santo Antonio tiveram pouca influência nas áreas afetadas pela cheia. Ele afirma que o método construtivo a fio d´água permite a passagem contínua do rio, sem que haja um reservatório que acumule a água. A consequência é uma área de inundação menor.  Mas ele alerta para a necessidade de repensar o modelo de hidrelétricas para a região em função da cheia do Madeira.

“É preciso rediscutir este modelo para a Amazônia, pois embora haja um menor impacto ambiental devido a área alagada ser inferior aos reservatórios construídos de modo convencional, como no caso da hidrelétrica de Tucuruí (PA), não há possibilidade de regularização das vazões. Ou seja, em um evento de grandes proporções como esta cheia de 2014, não houve retenção da água pelas usinas, o que poderia ter minimizado os efeitos da cheia. Fora a menor geração de energia que, neste momento de pico das águas, poderia estar gerando o dobro”, afirmou. Além de Santo Antônio e Jirau, a Amazônia convive com a construção de Belo Monte, em Altamira, no Pará, e o governo federal cogita outras usinas, em especial no rio Tapajós, também no Pará, outro importante formador da bacia amazônica.

A atribuição da responsabilidade das usinas no agravamento da cheia não é apenas apontada pelas populações atingidas e pelos movimentos sociais. O Ministério Público Federal de Rondônia entrou com uma ação pedindo a responsabilidade das usinas.
A Justiça Federal acatou e determinou que as empresas Santo Antônio Energia (SAE) e Usina de Santo Antônio e Energia Sustentável do Brasil, responsável por Jirau, não apenas atendam as necessidades das populações atingidas, mas também refaçam os Estudos de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima).

Na semana passada, a Justiça Federal manteve a condenação das empresas, mas concedeu um prazo para elas se manifestarem no processo.

Pesquisadores que estudam barragens e os impactos delas também afirmam que as usinas têm parcelas nos impactos da cheia do Madeira. Philip Fearnside, biólogo e ecológico do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), com sede em Manaus, é um deles.
Considerado um dos mais importantes cientistas do mundo, Fearnside foi consultor do parecer técnico sobre o EIA/Rima de Santo Antônio e Jirau para o Ministério Público de Rondônia e já alertava, na época, para os graves impactos ambientais das barragens.

Em entrevista ao site Amazônia Real, de Manaus, Fearnside declarou que a elevação dos níveis das águas dos reservatórios das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau pode ter contribuído para o agravamento das inundações e das erosões das margens do rio Madeira no município de Porto Velho.

“O volume entrando e saindo do lago de Santo Antônio deve ser mais ou menos em equilíbrio atualmente. A inundação em Porto Velho ia aumentar se baixar o nível no reservatório, liberando mais água a jusante (depois). O que tem um impacto claro em Porto Velho é a erosão da orla, que seria aumentada pela mudança das correntezas abaixo da barragem de Santo Antônio e pelo aumento da velocidade da água no trecho em frente à cidade”, disse Fearnside.

Rio Negro

O regime hidrológico na Amazônia tem um “cronograma” específico para cada bacia. Cada rio tem um mês diferente para atingir o pico. Em Manaus, o rio Negro atinge o nível mais alto, geralmente, no mês de junho (em alguns anos excepcionais, ocorre em maio, como foi em 2012, ano da maior cheia em mais de 100 anos).

Segundo o CPRM, a situação será de “normalidade” para as outras bacias. A cheia do rio Negro em 2014 tem a previsão de atingir cotas entre 28,79m e 29,49m. Provavelmente será uma cheia pouco menor que a de 2013.

No mês passado, porém, o Inpa divulgou uma nota informando que a cheia do rio Negro será “bem acentuada”, podendo ficar entre 28,64 metros e 29,24 metros. A informação foi dada com base nos estudos do pesquisador Jochen Schongart, que desenvolveu um novo modelo matemático de previsão das cheias da bacia. Ele destacou que o pico vai ocorrer na segunda quinzena de junho, em plena realização dos jogos da Copa do Mundo.

A maior cheia do rio Negro em mais de 100 anos registrada na cidade de Manaus ocorreu em 2012, quando o nível atingiu 29,97 metros. O rio Solimões também bateu recordes, provocando inundações em comunidades rurais e urbanas e causando estragos na agricultura e na pecuária da região. Dois anos antes, as bacias do rio Negro e Solimões atingiram a maior seca em mais de 100 anos.

Conforme Jochen Schongart, nos últimos 25 anos houve uma tendência de aumento de cheias e uma diminuição de seca na região. São os extremos com a tendência de serem mais severos, o que é previsto pelos modelos climáticos globais aplicados no Painel Intergovernamental e Mudança Climática 2013.