ONU e ONGs denunciam latino-americanos por não dar educação a pessoas com deficiência

No Paraná, aluno com deficiência auditiva abandona faculdade após mais de três anos lutando por contratação de intérprete; Procurador e professor lembram que há diversos instrumentos na legislação garantindo acesso

Brasília sediou em dezembro do ano passado a 2ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que teve o tema Inclusão, Participação e Desenvolvimento (Foto: Elza Fiúza. Agência Brasil)

O Brasil e outros países da América Latina serão alvo de uma denúncia formal apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por violação do direito à educação de pessoas com deficiência. A audiência está marcada para dia 6 de novembro, em Washington, nos Estados Unidos.

Os autores da denúncia são o relator especial da Organização das Nações Unidas sobre o Direito à Educação, Vernor Muñoz, em conjunto com outras entidades. Ele entende que o direito à educação das pessoas com deficiência na América Latina e no Caribe tem sido violado constantemente. No pedido apresentado à CIDH, as entidades lembram que, nas poucas vezes em que é oferecida, a educação à pessoa com deficiência se dá em um âmbito “especial”, que no geral quer dizer segregação.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o desrespeito aos direitos de pessoas com deficiência é uma das causas principais de abandono dos estudos. Boa parte dos pesquisadores entende que o melhor é a inclusão da pessoa com deficiência no sistema escolar comum, e o oferecimento de auxílio nos casos em que se avalie como necessário.

Seria essa a situação de Caio Lúcio Cascaes, 31 anos, deficiente auditivo e morador de Curitiba (PR). Em 2006, ele ingressou no curso de Engenharia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Seu pai recebeu da reitoria a promessa de que os professores fariam esforços para que o novo aluno pudesse acompanhar normalmente as aulas. Não demorou muito para que ficasse claro que muitos docentes não estavam dispostos a ajudar, e Caio começou a sentir-se desanimado com os rumos do estudo.

João Carlos Cascaes, pai de Caio, resolveu procurar ajuda do Ministério Público Estadual para forçar a contratação de um intérprete de Língua Brasileira dos Sinais (Libras), e recebeu ajuda, mas tudo o que conseguiu foram respostas evasivas por parte da universidade. O filho resolveu partir para o curso de tecnologia em sistemas pela internet, no qual esperava sanar parte das dificuldades de interação com professores e colegas de classe, mas os problemas continuaram.

A família, por fim, conseguiu com que a Justiça ouvisse o caso, mas a UTFPR argumentou que soluções haviam sido providenciadas e o caso acabou arquivado. Cascaes não tem dúvidas: a instituição de ensino mentiu, e os problemas de Caio apenas aumentaram. Por isso, entrou com novo recurso na Justiça.

“Enquanto isso, o Caio estava perdendo aula, perdendo motivação. É um mundo criminosamente torturante em cima de quem mais precisa do Estado”, lamenta o pai. 

O caso de Caio Cascaes não é isolado. Nesta semana, o Ministério Público Federal em São Paulo entrou com ação contra a Universidade Bandeirante (Uniban) pelo mesmo motivo. Os procuradores negociaram durante oito meses com a instituição a contratação de intérpretes de Libras, algo garantido pela Constituição, por tratados internacionais e por decretos presidenciais e portarias ministeriais. 

Na última tentativa, em setembro, a Uniban não deu qualquer resposta aos pedidos do Ministério Público, que não viu outra alternativa que não o caminho judicial, com pedido de multa de R$ 1.000 ao dia e de indenização de quase R$ 500 mil a ser revertida ao Fundo Nacional de Direitos Difusos.

Inclusão

A procuradora da República Eugênia Fávero, que há anos analisa o assunto, não tem dúvidas de que o melhor é a inclusão da pessoa com deficiência no sistema escolar comum. “O ensino público precisa garantir o apoio especializado que as crianças com deficiência precisarem em centros específicos que não substituem o ensino comum, mas complementam esse ensino”, afirma. 

O decreto presidencial 6.571 de 2008 prevê que, a partir de 1º de janeiro do próximo ano, as matrículas no ensino regular de alunos que requerem atendimento educacional especializado passam a ser computadas na distribuição de recursos às escolas. Além disso, o Ministério da Educação (MEC) fica obrigado a prestar apoio técnico e financeiro para a montagem dos mecanismos necessários para a inclusão de deficientes, como adaptações arquitetônicas, salas multifuncionais e formação de professores especializados.

Marcos Mazzotta, livre-docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e professor Titular da Universidade Mackenzie, elogia a iniciativa e classifica de selvagem a inclusão incondicional. Nesses casos, a pessoa com deficiência é retirada da escola regular e posicionada em unidade especial.

“Minha posição é da defesa da inclusão escolar com responsabilidade, que significa exatamente propiciar aqueles recursos especiais que forem requeridos”, explica Mazzotta. “Até porque não há como se falar em alunado com necessidades especiais sem se prover respostas ou recursos especializados que deem conta dessas necessidades”, avalia.

Enquanto as medidas não são plenamente cumpridas, no entanto, casos como o de Caio seguem ocorrendo. Em junho deste ano, o rapaz de Curitiba resolveu deixar o curso da UTFPR. Caio é casado e, no momento, trabalha porque a família não tinha como continuar financiando-o os gastos e não havia mais condições emocionais de seguir sofrendo o desgaste diário.

No começo de outubro, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região deu ganho de causa à família Cascaes e obrigou a universidade a contratar um tradutor de Libras. “A essa altura ele já deveria estar formado e trabalhando. Agora em agosto foi ao fundo do poço do ponto de vista emocional. Ele estourou de vez e isso foi um desespero aqui em casa”, lamenta João Carlos Cascaes.

A Universidade Tecnológica Federal do Paraná, além de ferir a lei, perdeu a chance de um importante benefício, que é a interação entre pessoas de distintas origens. “A entrada de crianças, jovens e adultos com deficiência na escola comum faz com que essa aproximação inicialmente física vá evoluindo para uma condição que inspire atitudes de respeito mútuo pelo próprio conhecimento que as pessoas vão tendo a respeito do outro”, destaca o professor Marcos Mazzotta.

A procuradora Eugênia Fávero está segura de que aumentou o número de pessoas com deficiência no sistema educacional comum, mas lembra que o número absoluto é muito baixo, já que no início deste século o índice ficava próximo de zero. “Uma criança com deficiência tem o direito inalienável de frequentar escola comum, como qualquer criança, com os apoios especializados que não substituem o direito que se tem a um ambiente coletivo e de crescer com sua geração”, sustenta.

Para ela, falta avançar na conscientização dos pais, dos responsáveis pelas escolas e dos professores.

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