atitude

Ouvidos solidários

Quando atende ao telefone, o voluntário sabe que não tem poder sobre a vida das pessoas. Mas quem o procura quase sempre encontra a força que faltava para reagir e mudar o rumo de sua história

Luciana Whitaker

Mayse é voluntária do CVV no Rio de Janeiro. O atendimento é realizado numa sala emprestada pelo Corpo de Bombeiros de Copacabana

A pessoa não consegue dormir. Pode estar abatida por uma depressão crônica. Uma tristeza causada por algo que mudou sua vida. Pressionada por um momento de desespero, de desalento ou de angústia. São 3 da madrugada, não é hora de incomodar ninguém. “Se ela não consegue vencer um momento difícil e nos liga, depois de uma conversa começa a organizar melhor seus pensamentos, embora o problema não tenha sido resolvido. Se não existíssemos para prestar esse atendimento, talvez as pessoas não conseguissem suportar o sofrimento”, resume a funcionária pública aposentada Mayse Gama, de 65 anos.

Mayse é um dos 2.500 voluntários do Centro de Valorização da Vida (CVV), programa de apoio emocional criado em 1962 para atender gratuitamente quem procura um espaço discreto e seguro para desabafar. Esse “não conseguir suportar o sofrimento” a que se refere a voluntária tem um impacto mais sério do que se imagina. Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam o suicídio como uma das principais causas de morte em todo o mundo, a terceira maior entre os óbitos ocorridos na faixa etária de 15 a 35 anos. Só no Brasil, 8.600 pessoas tiraram a própria vida em 2006, de acordo com o Ministério da Saúde.

Mayse acredita que seu gesto é efetivo para diminuir os casos de suicídio. O engenheiro paulistano Antônio (ele prefere não dizer o sobrenome), de 57 anos, concorda: “Quando a pessoa liga, tem a oportunidade de falar sobre aquela angústia, é como se ela pudesse esvaziar o copo que ia transbordar”. Ambos atuam na entidade há mais de dez anos, Mayse no posto em Copacabana, no Rio de Janeiro, e Antônio na Vila Carrão, em São Paulo.

O CVV tem 48 unidades e está presente em 18 estados. Atualmente há uma média de 35 atendentes por unidade – o ideal seria pelo menos 40. São donas de casa, médicos, vigilantes, engenheiros, psicólogos, aposentados, estudantes. Não importa a profissão: o requisito é ter aptidão para ouvir pessoas propensas ou determinadas a cometer suicídio. Os voluntários atuam quatro horas e meia por semana. O atendimento funciona 24 horas por dia, todos os dias, incluindo fins de semana e feriados. Eles passam por uma seleção e aqueles que têm perfil recebem treinamento durante oito semanas. Só em 2008, atenderam mais de 1,1 milhão de ligações.

Antônio conta que quando fez o curso a identificação foi imediata. “Você percebe que não somos tão diferentes. A vida proporciona coisas parecidas para todos, angústias, tristezas, os sentimentos são semelhantes. Nós conversamos, ouvimos com acolhimento, respeito e sem preconceito. É um exercício de compreensão”, define. “Aprendemos mais sobre a vida, a ser mais tolerantes, e isso melhora até as relações na família, com as pessoas com quem convivemos.” Ele garante: ali não é permitido dar conselhos. Também não há discussão religiosa, política nem ideológica. Os voluntários podem se manter no anonimato e usar pseudônimos. “Não importam o nome, a profissão, se somos casados ou não. E não perguntamos nada sobre a vida daqueles que ligam”, diz o engenheiro, que uma vez por semana faz plantão de madrugada.

Sem espera

No posto da Vila Carrão, o terreno é amplo e a construção, simples. Há uma grande sala para realização de cursos e palestras, uma pequena cozinha, um escritório com um sofá-cama, para quem faz plantão de madrugada e prefere dormir na sede, e duas salas de atendimento, uma com sofás para quem procura ajuda diretamente no posto, e outra, um tanto escura, com três baias com telefones.

Apenas uma delas está ocupada. Para receber a reportagem, César tira o telefone do gancho apenas por alguns minutos. Ele é vigilante noturno e fazia seu segundo plantão no início de agosto. “Trabalho de madrugada e venho à tarde, uma vez por semana. A sensação de ajudar os outros é indescritível. Auxilia quem nos procura e também a nós, que atendemos”, diz. Logo a reportagem tem de sair da sala para que ele volte ao telefone. “Ninguém que liga deixa de ser atendido. Somos responsáveis pelo nosso plantão e não podemos deixar o telefone tocando.”

No chat do CVVNet o atendimento tem os mesmos princípios. Ideia do advogado aposentado Arthur, de 71 anos, voluntário desde 1978, essa ferramenta foi implementada para alcançar os jovens, faixa que tem baixa procura pelo telefone, mas na qual o nível de suicídios é elevado. De 1999 a 2006 o número de mortes na faixa etária de 20 a 24 anos subiu de 838 para 1.049; de 25 a 29, passou de 748 para 988.

Devido ao baixo número de voluntários no serviço pela internet, apenas 22, o chat funciona segunda, quarta e sexta-feira, das 19h às 23h. O atendimento não deixou a desejar em relação ao telefônico. Aliás, o interlocutor parece se sentir mais anônimo e seguro para desabafar por escrito. “O número de pessoas que ‘fala’ claramente no desejo de morrer é muito maior do que pelo telefone”, constatou Arthur.

Mas quem ouve as aflições dos voluntários? Não é incomum eles serem tocados pelo sofrimento alheio. Por isso há treinamento e aperfeiçoamento constantes. “Falo com outros voluntários sobre o que está me incomodando. Nas reuniões de grupo a gente se fortalece”, diz Antônio. E nem sempre eles conseguem se blindar. “Se eu disser que não fico triste com algumas coisas que escuto, estarei mentindo”, admite Mayse. “Embora eu esteja voltada completamente para aquela pessoa, que é a mais importante para mim naquele momento, tenho humildade para entender que não posso mudar sua vida, só ela pode.”

Para funcionar, o CVV depende completamente dos voluntários. Quem pode ajuda também nos gastos com água, energia, apostilas. “Cada um estabelece uma contribuição e quem não pode pagar não precisa. Mas em geral é assim que nos mantemos”, conta Mayse.

Tanto esforço e dedicação explicam por que muitos voluntários permanecem tanto tempo. Pelo chat que ajudou a criar, Arthur escreve sobre suas convicções: “Esse trabalho tem o mérito de preservar um valor fundamental, que é a solidariedade. Isso tem um alcance imenso: a valorização da vida em todos os sentidos é algo básico para que possamos pensar em um planeta mais acolhedor, que forneça aos nossos descendentes condições mais adequadas para viver”.

Saiba mais
Atendimento por telefone: 141 (gratuito, 24h)

Estados onde há postos: AP, BA, CE, DF, ES, GO, MG, MT, MS, PA, PB, PE, PR, RJ, RN, RS, SC, SP.

Todo atendimento é anônimo e sigiloso, o usuário não precisa se identificar e o número do telefone e a conversa não são gravados.

Visite www.cvv.org.br e saiba sobre telefones próprios e endereços dos postos; atendimento por correspondência, por e-mail e por chat; como ser voluntário e como colaborar.