velha ordem

Para Domenico Losurdo, novo conflito mundial é possibilidade real

'A condução política de Washington corre riscos de provocar uma nova guerra mundial, que pode até atravessar o limiar nuclear', afirma à 'RBA' o filósofo italiano

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Losurdo: esquerda deve perceber que a luta contra o imperialismo é parte integral da luta de classes para emancipação

São Paulo – Depois que o fenômeno republicano e midiático Donald Trump assumiu o poder nos Estados Unidos e radicalizou o discurso contra as minorias e oponentes do imperialismo, algumas vozes têm dito que o mundo pode estar a caminho de um novo conflito mundial.

Essa é uma tese que soa falsa, dependendo da credibilidade ou fundamentação de quem a afirma, mas nas palavras do filósofo italiano Domenico Losurdo ela é real: “A condução política de Washington corre riscos de provocar uma nova guerra mundial, que pode até atravessar o limiar nuclear”, afirma ele, em entrevista à RBA, para quem os conflitos atuais, que colocam o Ocidente em oposição aos países fora de sua lógica, nada mais são do que expressões do pensamento tradicional colonialista.

A falta de conhecimento de história, um problema sério no Brasil, mas que atinge praticamente todo o mundo ocidental sob o furor consumista e imediatista, permite que a mídia tradicional, sempre a favor do poder instituído e dos ditames do capital, destile seu discurso conservador com menos resistência e menos sentimento de indignação que ocorreriam à luz da memória dos fatos. É o que se esforça por mostrar Losurdo.

“A luta contra o neoliberalismo precisa estar unida à luta contra o colonialismo, neocolonialismo e imperialismo”, afirma o filósofo, que nesta entrevista concedida por e-mail também desmonta a linguagem que se mostra como nova roupagem para antigos conceitos. “Atualmente, as guerras coloniais e neocoloniais são frequentemente realizadas em nome dos valores e interesses ocidentais”, sustenta o professor, demonstrando que, historicamente, o século 20 se rebelou contra a colonização, mas agora corremos o risco do retrocesso.

Nesta entrevista, o leitor tem a oportunidade de verificar pelos menos dois pontos: como o colonialismo continua vivo, portanto, com outras denominações, e também como a luta de classes se expressa no enfrentamento do neoliberalismo sobre os velhos conceitos de dominação.

Como o senhor descreve o colonialismo hoje? É um tipo de luta de classes, por que?

Desde 1989, o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, desencadeou guerras contra Panamá, Iraque, Iugoslávia, Líbia e Síria. Apesar das diferenças entre as guerras, esses países têm duas características em comum: eles são importantes do ponto de vista da geopolítica e têm por trás deles uma revolução feudal e outra anticolonial. Na verdade, frente a essas guerras, os atacantes preferem falar de “operações políticas internacionais”. Mas essa linguagem vem da tradição colonial.

No começo do século 20, o presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, uma referência do colonialismo, imperialismo e racismo, gostava de justificar suas intervenções na América Latina precisamente desse modo, referindo-se às “operações políticas internacionais”.

É verdade para os dias atuais que os Estados Unidos e seus aliados e vassalos têm celebrado suas guerras como “humanitárias”. E de novo somos levados de volta para a linguagem da tradição colonial. Em seu tempo, (o colonizador britânico) Cecil Rhodes (1853-1902) resumiu a filosofia do Império Britânico deste modo: “filantropia, mais 5%”. Atualmente, as guerras coloniais e neocoloniais são frequentemente realizadas em nome dos valores e interesses ocidentais. “Filantropia” tornou-se “valores do Ocidente” e o percentual de 5%, tornou-se “interesses do Ocidente”.

As guerras desencadeadas pelo imperialismo desde 1989 (depois da vitória na Guerra Fria) causaram dezenas de milhares de mortes; são centenas de milhares de feridos; milhões de refugiados; destruíram países e condenaram ao subdesenvolvimento e ao desespero muita gente. É óbvio que a luta contra essas calúnias é uma luta de classes pela emancipação. Marx apontou: a barbaridade do capitalismo é manifestada primeiro nas colônias; por isso, a luta contra a dominação colonial e semicolonial é uma luta de classes por excelência.  

O senhor publicou no Brasil o livro “Esquerda Ausente”. Qual o papel dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais nos dias de hoje? Como eles podem se organizar?

Não pode ser considerado realmente de esquerda um partido ou força política que se limite a combater o neoliberalismo. Esta é a questão central. A luta contra o neoliberalismo precisa estar unida à luta contra o colonialismo, neocolonialismo e imperialismo. Especialmente em um momento como o presente. A condução política de Washington corre riscos de provocar uma nova guerra mundial, que pode até atravessar o limiar nuclear. Muitos observadores, incluindo os conservadores, destacam um ponto essencial: por algum tempo, o foco central da política externa norte-americana se ateve à habilidade de infligir uma ‘primeira ação nuclear sem consequências’ (para isso, sistemas antimísseis foram instalados nas fronteiras entre Rússia e China). Bom, a esquerda deve perceber que a luta contra o imperialismo, contra essa política de dominação e contra a guerra é uma parte integrante da luta de classes para emancipação.

No Brasil, o Congresso Nacional aprovou uma lei que congela e reduz o investimento em setores sociais para os próximos 20 anos. Outros direitos trabalhistas e sociais estão ameaçados. Qual pode ser o impacto dessas decisões para a democracia brasileira?

Ainda nos anos 1970, Friedrich August von Hayek, o patriarca do neoliberalismo, pediu o expurgo da Carta de Direitos sancionada pela ONU (direitos como à vida, ao trabalho, à saúde, educação etc.). Em sua cruzada contra o Estado de bem-estar social, Hayek não se referiu a problemas de orçamento; ele não se referiu a dificuldades econômicas. Não, para o patriarca do neoliberalismo, direitos sociais e econômicos deveriam ser eliminados pelo fato de que, a seus olhos, eles eram resultado de ruínas das influências exercidas, mesmo no Ocidente, pela “Revolução Marxista Russa”, nome pelo qual chamava a Revolução de Outubro. Na Europa e no Ocidente, após o enfraquecimento dos desafios do movimento comunista, a burguesia tratou de desmantelar o Estado de bem-estar social.

A contrarrevolução neoliberal também é perceptível no Brasil e na América Latina. Sem dúvida, o desmantelamento do Estado de bem-estar social acaba minando a democracia em si. Alguns analistas e autores, mesmo liberais, afirmam que a democracia norte-americana foi substituída por uma plutocracia, que é o domínio do Estado pelas grandes corporações. Para citar Joseph Stiglitz, economista norte-americano e Nobel de economia: “Em um país dominado pelo capital, desigualdades econômicas se traduzem em desigualdades políticas”.

Como o senhor avalia a perseguição sofrida por Lula pela Operação Lava Jato? Acredita em similaridades no processo de investigação entre a Lava Jato e a operação Mãos Limpas na Itália? Quais as principais? E qual a sua opinião sobre o impeachment da Dilma Rousseff, foi um golpe de Estado?

Para impor seu império global, o imperialismo norte-americano utiliza de recursos como guerras, golpes de Estado e operações de mudanças de regimes. Os golpes e as alterações nos regimes podem assumir diversas formas. Em 2002, Hugo Chávez, eleito pelo povo da Venezuela, foi deposto por um golpe tradicional, prontamente endossado e legitimado por Washington. Mas vejamos como, um ano após a chamada “Revolução Rosa”, na Geórgia, foi imposta uma mudança de regime, tornando o governo vassalo do poder norte-americano. Eu mesmo avalio a reconstrução feita por uma revista francesa autoritária de geopolítica (Hérodote):

“A corrupção do regime se apresenta em todos os aspectos. Se necessário, não hesitando em mentir. Em meados de novembro, algumas revistas alemãs afirmaram que  Eduard Shevardnadze (líder no poder na Geórgia até então) comprou uma propriedade luxuosa na cidade de Baden Baden, no sul da Alemanha. De acordo com o ‘Bild’ (jornal alemão de ampla circulação) o valor da residência ultrapassa os 11 milhões de euros. A informação não é confirmada. Quem se importa? A notícia é muito boa e o Roustavi 2:24 Saati (televisão romena) exibiu uma imagem de uma casa imensa que pode ser localizada realmente na Alemanha, ou em qualquer outro lugar no mundo. Mais tarde, viemos a saber de uma das fontes de informação que a foto exibida havia sido escolhida de modo aleatório da internet.”

Mesmo uma causa nobre (o combate à corrupção), pode servir como pretexto para um golpe de Estado. O manual quase oficial que o Departamento de Estado utiliza para promover mudanças de regimes (G. G. Sharp, From Dictatorship to Democracy. A Conceptual Framework for Liberation, 1993, The Alber Einstein Institution, Boston) recomenda explicitamente a promoção de mobilizações de objetivos aparentemente não políticos, mas com forte presença do sentimento da população.

É possível dizer que estamos assistindo a um avanço conservador no mundo? O neoliberalismo está crescendo? Como as organizações progressistas deveriam atuar?

A situação é mais complexa. Para entender o mundo de hoje, nós precisamos levar em conta que existem dois processos contraditórios. No Ocidente, a burguesia, encorajada pelo fim da União Soviética e pela crise do movimento comunista na Europa, desmantelou o Estado de bem-estar e conduziu um crescente número de trabalhadores para o desemprego, precariedade do trabalho, para a austeridade, baixos salários e miséria. Ou seja, na Europa e no Ocidente a desigualdade entre a minoria privilegiada e a vasta maioria da população está constantemente crescendo. Agora vamos olhar para fora da Europa e do Ocidente: num país como a China, centenas e centenas de milhões de pessoas estão livres da fome e da miséria, e começam a ter acesso ao Estado de bem-estar.

Especialmente em tempos recentes, a China tem experimentado um rápido crescimento também em termos de tecnologia e está quebrando o monopólio hi-tech que até recentemente pertencia ao Ocidente. Em outras palavras, no capitalismo ocidental a desigualdade e a polarização social estão crescendo. No nível global, a vantagem econômica, tecnológica e militar que por séculos permitiu ao Ocidente dominar, escravizar e dizimar o resto do mundo está falhando. Em especial o superpoder do capitalismo e do imperialismo norte-americano não pode aceitar esse segundo processo. Por isso, as muitas guerras coloniais e neocoloniais e a preparação para uma guerra em larga escala contra a China e Rússia, que sob Yeltsin se tornou ou esteve perto de se tornar uma semicolônia do Ocidente.

No seu livro Guerra e Revolução (Boitempo Editorial) o senhor analisa o conceito de revisionismo, argumentando que ele nos leva de volta ao colonialismo. Poderia explicar como o revisionismo opera e nos dar alguns exemplos?

Imediatamente após a vitória alcançada na Guerra Fria, o Ocidente tem celebrado o colonialismo explicitamente. Pense no filósofo mais ou menos oficial do Ocidente e da “sociedade aberta”. Eu me refiro ao K. R. Popper, em 1992, com a referência para as ex-colônias, que proclamou: “Nós libertamos esses Estados rapidamente e de forma simples; é como dar-se um jardim de infância”. Para aqueles que ainda não entenderam, um ano depois o The New York Times Magazine, o suplemento de domingo do principal jornal dos EUA, não poderia conter seu entusiasmo no título de um artigo escrito por um historiador britânico de sucesso (P. Johnson): “Colonialismo está de volta e não é um período breve”.

Um dos historiadores de maior sucesso hoje, N. Ferguson, defende o estabelecimento de um escritório colonial norte-americano, como o estabelecido pelo Império Britânico. Junto com o colonialismo, os ideólogos do Ocidente também celebram o imperialismo. Em 1999, enquanto a Otan bombardeou, destruiu e desmembrou a Iugoslávia, um expoente bem conhecido do neoconservadorismo norte-americano (R. D. Kaplan) escreveu: “Somente o imperialismo ocidental, embora pouco se atrevam a chamá-lo pelo nome, pode agora unir a Europa e salvar os Balcãs do caos”.

Alguns anos depois, em março-abril de 2002: Foreign Affairs, uma revista parceira do Departamento de Estado norte-americano, com seu título e com o artigo de abertura (encomendado a S. Mallaby), convidou todos a reconhecer os fatos: “a lógica do imperialismo” ou “neo-imperialismo” era “demasiado rigorosa”; ninguém poderia contê-lo.

Ainda hoje, o historiador de maior sucesso dos dois lados do Atlântico, N. Ferguson, olhando para Washington, elogia o “poder magnânimo mais poderoso que jamais existiu”.

Compreende-se então a antifúria. Já na época da conquista do poder, Lênin chamou os “escravos da colônia” para quebrarem suas correntes. E, na verdade, promovida e inspirada pela Revolução de Outubro, uma grande revolução anticolonial se desenvolveu no século 20 em todo o mundo, causando uma crise na Doutrina Monroe da América Latina. Na ideologia dominante, por outro lado, a reabilitação do colonialismo e do imperialismo vai de mãos dadas com a demonização da Revolução de Outubro. Esta é a essência do revisionismo histórico.

Colaboraram: Gabriel Valery, Helder Lima e Sarah Fernandes