Uma história sem pé nem cabeça; nem mãos

Memorial em homenagem a Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo Normalmente esta história é contada a partir dos grandes nomes envolvidos. Mas vou abrir espaço aqui no blog para que seja […]

Memorial em homenagem a Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo

Normalmente esta história é contada a partir dos grandes nomes envolvidos.

Mas vou abrir espaço aqui no blog para que seja contada a partir do ponto de vista do nome mais desconhecido de todos. Pelo menos até agora. Passo a palavra à narradora, conforme a ouvi numa noite de insônia, dessas de dormir acordado:

“Meu nome é… ninguém sabe. Então quem sou eu?

Sou um cadáver. Um corpo de mulher, mediano na altura, com pernas de tamanho desigual graças a um problema de atrite ou atrose, não sei nem se sabe muito bem. Estive embaixo d’água por algum tempo.

Acontece que não tenho cabeça, nem pés nem mãos. Sou apenas um torso com braços e pernas incompletos.

Estou congelada há mais ou menos 90 anos do Instituto Médico Legal do complexo da Charité (equivalente a uma mistura do Complexo das Clínicas e da Santa Casa em São Paulo – nota do responsável pelo blog).

Quem me trouxe à luz dos refletores (que agora me incomodam, apesar de meus olhos estarem ausentes de mim) foi o dr. Michael Tsokos, diretor deste departamento da Charité, que por tanto tempo foi o meu lar.

Fez uma série de exames em mim. Acredita que eu possa ser o cadáver da grande Rosa Luxemburgo, a legendária Rosa Vermelha, assassinada em 15 de janeiro de 1919 pelos Freikorps, bandos de para-militares de extrema direita com seu companheiro de partido e lutas Karl Liebknecht, além de vários outros, num progrom contra comunistas.

Esses Freikorps eram formados por militares alemães que se consideravam traídos pelos políticos civis ao fim da Primeira Guerra Mundial. Tinham especial ódio aos comunistas, por causa da campanha pacifista que estes faziam, dizendo que as guerras só beneficiavam os muito ricos, e que os trabalhadores de todos os países deviam se unir para criar governos deles que fizessem a paz.

Na confusão que na Alemanha sucedeu à derrota na guerra, o Imperador renunciou e proclamou-se a República. Não, minto, proclamaram-se as Repúblicas. A Oficial, a partir do Parlamento existente, no Reichstag, um prédio então reluzente de novo. E a dos Trabalhadores, proclamada no bairro operário de Alexanderplatz. Uma não ficava longe da outra.  Talvez isso tenha acirrado a disputa.

O governo oficial tinha à testa, essa maravilha que não tenho, um político do Partido Social Democrata, que fora até uma espécie de discípulo de Karl, Friedrich Ebert. Até hoje se discute muito sobre quanto o Friedrich sabia dos crimes planejados pelos Freikorps, se ele foi cúmplice ou só permissivo em relação ao que se seguiu. Mas algo ele foi.

Não me perguntem como eu ouço essas coisas, já que não tenho orelhas. Acontece que aqui na Charité e na Berlim inteira, até as paredes têm ouvidos. E há muita história ainda incontada pra contar.

A minha, por exemplo. Mas por ora vou voltar à história da Rosa e do Karl. Eles foram presos, bateram muito neles, depois levaram os dois para um bosque chamado de Tiergarten e lá os assassinaram. E o corpo da Rosa foi jogado num dos tantos canais de Berlim, o Landwehrkanal. Quatro meses depois, acharam o corpo. Ele foi trazido para cá, fizeram uma autópsia, e enterraram o corpo num cemitério então também novo, o Cemitério Central de Friedrichsfelde, no bairro de Lichtenberg.

Aqui começa a discussão. O dr. Tsokos tem dúvidas de que o corpo enterrado seja o da Rosa. Diz que pode ser que seja eu o seu corpo. Isso porque o corpo enterrado não tinha, ou não constava dos documentos, o tal de defeito nas pernas que a Rosa tinha e que eu tenho. Mas a advertência do dr. Tsokos despertou a fúria de muita gente, inclusive a do seu antecessor neste departamento, o dr. Volkmer Schneider. Também pudera: se ficar provado que eu sou a Rosa, vai ficar muito mal para ele. De todo modo, as coisas não estão bem para muitos: não conheço a história de algum outro IML pelo mundo, mas acho estranho que um cadáver de mulher como eu fique 90 anos na geladeira sem identificação, sem, parece, que ninguém, até a chegada do dr. Tsokos, tenha se preocupado comigo ou com isso. Ademais, sopra-se pelas paredes aqui do hospital que a cabeça de Rosa não teria sido enterrada com o corpo. Naquela época tinha muito médico que gostava de examinar a cabeça de gente “não normal”, para ver se tinha alguma relação entre o seu formato e o comportamento “irregular” dessas pessoas. E os revolucionários eram vistos por muitos como gente “anormal”.

A briga pegou fogo. Tem gente que até pode perder a cabeça com isso. Desculpem, acho que disse algo de mau gosto. Mas é verdade. O dr. Schneider chamou um historiador amador em sua ajuda, o sr. Klaus Gietinger, que passou a reunir documentação para provar que o corpo da Rosa foi enterrado e que, portanto, eu sou alguma outra pessoa. Para ele tudo é uma jogada sensacionalista do dr. Tsokos, que quer lançar um livro sobre casos de identificação de cadáveres misteriosos. E ele, Gietinger, está lançando um outro livro, para provar que eu sou… bem, sei lá quem, e que a Rosa é a Rosa, diferente de mim.

É capaz de tudo acabar numa guerra de livros.

Bem, há uma dificuldade em tudo isso. É que, quando os nazistas tomaram o poder, destruíram o mausoléu onde estavam os corpos de Karl e o suposto de Rosa, profanaram os túmulos e sumiram com os corpos. Depois da Guerra o mausoléu foi reerguido, e hoje lá está no cemitério, num imponente monumento dedicado aos socialistas. Mas o lugar dos túmulos de Karl e Rosa está… vazio.

Vazio por vazio, existe um outro túmulo de Karl, num parque, chamado Friedrichshein. Veja só no que essas coisas vão dar: dois túmulos sem nenhum corpo, e até agora, pelo menos, um corpo sem túmulo, que sou eu, seja quem eu for. Todos os anos, neste inclusive, milhares de pessoas acorrem ao monumento do Friedrichsfeld para homenagear Karl e Rosa no dia 15 de janeiro. Só neste de 2010 estiveram lá um número estimado em 40 mil para os organizadores, 20 mil para a polícia! E estava um frio de rachar, com 30 centímetros de neve! A multidão leva cravos e rosas vermelhas para por sobre os túmulos dos dois, mais o de outros que lá estão. Dizem que as rosas e os cravos são imagens dos corpos que lá não estão, ainda a verter sangue e memória para nos lembrar dos crimes cometidos e dos sonhos que aqueles revolucionários tinham, e a se multiplicar em milhares de idéias e corpos libertários pelo mundo inteiro.

O dr. Tsokos tem também um historiador do seu lado, o professor Jörn Schütrumpf, para quem pairam suspeitas sobre a veracidade dos documentos de 1919, inclusive as autópsias.

(Foto: Flavio Aguiar)

Uma confusão!

Para o dr. Tsokos, só um exame de DNA pode solucionar quem de fato, eu sou, ou quem, pelo menos, eu não sou. Ele descobriu uma sobrinha neta de Rosa em Israel. Mas o parentesco é muito distante para permitir uma identificação segura. Por outro lado, há o túmulo dos pais de Rosa, em Varsóvia, na Polônia. Mas vejam só, que coisa! Primeiro a sobrinha neta, Irene Borde, concordou em permitir a abertura dos túmulos. Mas depois “desconcordou”! Será que foram soprar alguma coisa nos ouvidos dela? Ou ela só ficou mesmo com medo? Vá se saber o que passa pela cabeça das pessoas! Ah, se eu tivesse uma… Pelo menos já poderiam saber se eu era de fato parecida com a Rosa ou não!

Agora as esperanças do dr. Tsokos estão numa história de arrepiar cabelos! Dizem que a Rosa teve um caso com seu advogado, Paul Levi, para quem ela teria dado uma mecha de seus cabelos. Ele morreu em 1930. A família de Levi fugiu para os Estados Unidos em 1933, quando Hitler assumiu o poder. Quem sabe, se ele conseguir encontrar descendentes, a mecha ainda estará lá?

De momento, não sei o que pensar. É claro que para mim seria uma honra se eu descobrir que sou de fato a Rosa. Haveria um enterro com grande pompa naquele memorial. Anualmente, eu receberia milhares de flores. Isso não me incomoda, porque nas noites frias eu teria como descansar, acompanhada pela vagareza das estrelas.

É verdade que muita gente ficaria incomodada com isso. Espero que isso não atrapalhe as investigações.

Por outro lado, se eu não for, teria direito, nessa altura, (espero) a um enterro tranqüilo, nalgum lugar desconhecido, onde eu poderia descansar, e não ficar exposta à curiosidade pública. As mesmas estrelas me acompanhariam nas noites calmas de uma campa solitária, mas pelo menos minha.

O frio da noite, ao invés do da geladeira onde me encontro há noventa anos, seja lá quem eu seja, me seria mais confortável, mais acolhedor, mais bondoso para comigo.

Em ambos os casos, eu encontraria o que, afinal, os mortos merecem: respeito”.

Na minha noite insone, mais o corpo não disse.