Não são números

A cara do desemprego em uma fila por vagas em hotelaria em São Paulo. Conheça as histórias

No país de quase 11 milhões de desempregados, o primeiro da fila (que teve 3 mil pessoas) enfrentou 11 horas para concorrer a uma das 789 vagas de emprego

Clara Assunção/RBA
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"Quero trabalhar, por isso vim aqui e já fui em busca de muitas vagas. Mas olha a multidão de gente aí, não é apenas eu"

São Paulo – “Já fiz processo de um monte de coisa para trabalhar. A gente é preparado, mas parece que você faz 45 anos e não serve.” A queixa é de Reginaldo Gama do Nascimento, que aos 58 anos mantém expectativa de conseguir uma ocupação com carteira assinada para alcançar a aposentadoria. Reginaldo era um, entre milhares de pessoas que foram para a fila do Feirão de Empregos do setor hoteleiro, no bairro da Liberdade, centro de São Paulo, na última quarta-feira (13). Mais do que números, elas são a cara do desemprego que persiste gravemente no país nos últimos seis anos.

Há mais de dois anos desempregado, desde que foi desligado de uma empresa de transporte em Osasco, na Grande São Paulo, onde atuava na limpeza, Reginaldo tenta uma recolocação no mercado formal. Mas só encontra ocupações informais, os “bicos”. E, sobretudo, portas fechadas pelo preconceito por sua idade. Em meio a tantas filas do desemprego que já encarou ao longo desse tempo, ele faz questão de mostrar as páginas de suas duas carteiras de trabalho protegidas por uma capa dura feita por ele próprio.

Os registros ainda estão longe de lhe permitir acesso à aposentadoria, mas dão provas da experiência profissional que parece se esvair desde 2020. Dentro da capa, que leva seu nome em baixo relevo – feita dessa forma para poder levar no bolso em caso de ser parado pela polícia –, a primeira carteira de trabalho mostra seu primeiro emprego, como auxiliar de encadernação, em 1982, na Encadernadora Universitária. Ao longo de mais de uma década, Reginaldo chegou a ser oficial encadernador, “promovido por mérito”, como consta no documento.

“Era uma qualidade que eu tinha e está aqui”

No período chegou a fazer 100 pastas para o Consulado de Israel e o álbum de casamento da ex-jogadora de basquete Hortência Marcari com o empresário José Vitor Oliva, em 1989. No último emprego na empresa de ônibus, Reginaldo aprendeu em apenas 15 dias o serviço de borracheiro quando cobriu as férias de um colega. Mas, apesar de se mostrar prestativo, não encontra oportunidades. 

Atualmente, para sobreviver, ele vende capas para documentos em frente ao Poupatempo da Sé, no centro, ou de Santo Amaro, na zona sul. Nos melhores momentos de vendas, consegue até R$ 1 mil por mês, que usa no pagamento do aluguel da casa que mora com a esposa e uma cachorra, em Osasco.

“Eu quero trabalhar, por isso que vim aqui e já fui em busca de muitas vagas. Mas olha a multidão de gente aí, não é apenas eu querendo trabalhar. E se você olhar, vão ter pessoas com currículos bons, jovens que estão aí. E sabe por quê? É governante que não dá estrutura, não investe de verdade, só manda a reforma da previdência”, critica. 

a cara do desemprego
Clara Assunção/RBA
A cara do desemprego. Trabalhadores mais velhos, como Reginaldo, também passam horas na fila na esperança de voltar a ter carteira assinada e conseguir se aposentar (Fotos: Clara Assunção/RBA)

“Como a gente tem filho, não é fácil”

Moradora do Jardim Brasília, na zona norte da capital, Luciana Gomes Ferreira, 40 anos, não lembra a última vez que teve um emprego com carteira assinada. “Eu sempre trabalhei, grande parte em casa de família, como empregada doméstica, mas a maioria sem registro.”

Desempregada desde o primeiro ano da pandemia de covid-19, em 2020, ela sustenta os dois filhos – um de 7 e outro de 17 anos – com a renda de diarista. O marido de Luciana também perdeu o emprego no período e hoje é vendedor informal. A oportunidade de conseguir uma das 789 vagas efetivas no ramo da hotelaria paulistana foi o que a atraiu a enfrentar mais de três horas de fila para participar do feirão. 

“Como a gente tem filho, não é fácil. Faço esses bicos como diarista e não cheguei ainda a passar ‘precisão’ das coisas. A gente não tem o luxo para ir comprar roupa, essas coisas, ou para lazer. Mas o alimento, graças a Deus, a gente tem. E é isso que eu quero, (arrumar um emprego) para poder contar que em tal mês poderei levar meus filhos para tal lugar, ou comprar um brinquedo para eles. (…) me entristece bastante querer ajudá-los, mas não ter como”, lamenta Luciana. 

Com estudo e sem oportunidade

A fila com mais de mil pessoas que tomava a Rua Taguá com a Pirapitingui, na região central da capital, não desanimou a bacharel em Administração e Recursos Humanos Jennifer Cristina Azevedo Santos Queiroz, 33 anos e pós-graduada nessas áreas. “Está difícil para todo mundo e todos têm que tentar. O que tiver que ser será”, disse, entre resignação e esperança. Jennifer era uma das poucas que destacava o interesse específico nas vagas para as áreas administrativas na busca também por uma mudança de endereço de São Vicente, no litoral sul paulista, onde mora, para São Paulo. 

É um direcionamento de carreira que pretende fazer, depois de ser desligada, há um mês, de uma transportadora em Santos. Com a alta nos preços dos combustíveis, a empresa teve que aumentar o frete e perdeu clientes depois de ter tido um boom nas fases mais restritivas da pandemia, quando o e-commerce passou a crescer fortemente. Agora, a bacharel vive um período de bastante expectativa para voltar ao mercado, conforme descreve. Ela vem se mantendo com o seguro-desemprego, mas sabe que o “tempo passa rápido” e as “oportunidades são escassas”. 

Já a fila não intimida, mas revela a Jennifer, por outro lado, um diagnóstico do país. “Mostra que não é só quem não tem estudo que está desempregado. Porque se vê muita gente com estudo buscando oportunidades. É o país”. 

Perdeu emprego e o padrão de vida

“Perdi o emprego mais ou menos no início da pandemia, em junho de 2020. E de lá pra cá estou vivendo de bico. Faço bico em restaurante como garçom. O que aparecer na frente estou fazendo. Mas tenho experiência com compras, supervisão de fábrica de salgados – que eu trabalhava antes –, analista de RH… Ou seja, minha experiência é um pouquinho ampla, mas não acho vaga”, resume Henrique Santana, de 45 anos.

Junto com emprego formal, Santana perdeu também o padrão de vida e com o passar dos anos, sem uma recolocação no mercado, precisou vender até o carro. “Você vai se desfazendo de tudo”, conta. Seu grande temor hoje é não conseguir pagar o financiamento da casa. Já foram 15 anos cobertos, mas ainda faltam outros 10 e suas reservas econômicas já estão minguando.

“Para mim, isso (multidão na fila por ocupação) já está uma coisa normal. É claro que no início, quando eu perdi o emprego, eu me assustava com muita coisa. Mas eu já estou vendo isso tudo como normal, porque parece que assim você não vê os governantes fazendo nada pra ajudar.” 

Segundo dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, o aumento no número de trabalhadores sem carteira e a queda nos rendimentos do trabalho são os responsáveis pelo recuo na taxa de desemprego do Brasil. O número de desempregados soma, atualmente, 10,6 milhões. Mas 40,1% dos ocupados, ou 39 milhões de trabalhadores, são informais.

Esperança nas eleições

Aos colegas que acaba de conhecer na fila do feirão, Zuleide Alexandre Gomes, de 53 anos, desabafava sobre “como tem sido difícil ficar desempregada”. A moradora do Jardim Paulistano, em Pirituba, na zona noroeste de São Paulo, perdeu o emprego há um ano, quando o hotel em que trabalhava como camareira fez novos cortes. 

Desde então, ela tem buscado alguma renda trabalhando como diarista, mas relata que não está fácil nessa área também. “Quando você consegue (uma diária) não querem pagar o valor que você está pedindo. Mas nós, brasileiros, ‘damos um jeitinho’ e aceitamos o que temos que aceitar para sobreviver”, relata. 

Apesar das dificuldades, Zuleide se mantém bem-humorada e só desanima com a possibilidade de que, com o passar dos anos, fique cada vez mais difícil conseguir se recolocar no mercado. A trabalhadora também não titubeia ao dizer que há um responsável pelo atual cenário do Brasil, marcado pelo desemprego e inflação em alta.

“Precisamos de uma pessoa que dê mais possibilidade para nós também, que olhe pra nós. De um governo e um presidente que olhe para a nossa classe trabalhadora, para que a gente tenha mais oportunidade, uma boa alimentação, que a gente tenha uma boa educação e saúde. É disso que a gente está precisando, não queremos nada de ninguém, só queremos ter situações melhores.”


Clara Assunção/RBA
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Primeiro emprego para ajudar em casa

Kalebe da Silva Jesus Santana, de 17 anos, está em busca de seu primeiro emprego para complementar a renda da família. A possibilidade de uma oportunidade levou o jovem que mora em São Miguel Paulista, no extremo leste, com o pai, a mãe e mais dois irmãos, até o bairro da Liberdade. 

O pai de Kalebe trabalha e a mãe, desempregada, tenta uma renda extra em ocupações informais. Mas o rendimento de ambos não vem acompanhando a escalada da inflação que prejudica, principalmente, a cesta básica de alimentos da família. 

O que a gente comprava antes, hoje está mais difícil. A gente fazia compras maiores, é o que mais impactou na parte do dinheiro. E a gente não tinha muita dificuldade de comprar móveis, essas coisas. Teve uma diminuição na renda sim”, observa o estudante do terceiro ano do ensino médio, em escola pública.

A cara do desemprego

Aos 21 anos, Laura Kautice Xavier Machado percebe com clareza que a situação de desemprego pode ter muitas caras, mas a maioria delas são de “jovens negros de periferia. Infelizmente é quem você vê que está precisando de emprego. Essa é a realidade”. Ela chegou por volta das 23h da noite anterior ao anunciado feirão de vagas, depois de ler uma reportagem em que uma mulher dormiu na fila para conseguir um emprego em um outro mutirão, do Sindicato dos Comerciários e da União Geral dos Trabalhadores (UGT), realizado em maio

Na matéria, ela leu o comentário da trabalhadora de que apenas se arrependeu de não ter levado um cobertor. Precavida, Laura não se esqueceu de trazê-lo, o que foi bastante útil naquela madrugada de baixa temperatura e garoa na capital paulista. Acompanhada do irmão, de 16 anos, ela sonha com um emprego registrado porque precisa de estabilidade para criar a filha de apenas 6 meses. 

Apesar da pouca idade, Laura já trabalhou na rede de fast food Burger King, vendendo brigadeiro na Avenida Paulista, como atendente em postos de conveniência e telefonista em pizzaria. Todos “bicos”, com exceção do emprego no atendimento ao público do Burger King. Mas antes mesmo de ficar grávida, no ano passado, a jovem já estava desempregada. Atualmente ela sobrevive com os R$ 400 do Auxílio Brasil, a pensão paga pelo pai da filha e pela ajuda da mãe.  

Há dois meses, ela também tentou uma vaga de balconista em um supermercado próximo a Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital. Eram 200 pessoas para uma única vaga e ela não conseguiu.

Dessa vez, ao deixar a sede do Sindicato dos Trabalhadores em Hotéis Bares Restaurantes de São Paulo (Sinthoresp), Laura estava mais confiante após preencher o perfil para uma vaga de recepcionista. “Você tem que batalhar e não desanimar. É sobre isso: batalhar, batalhar, batalhar. Para ano que vem eu conseguir começar minha faculdade de Educação Física”, planeja. 

Esperança

Desde que já chegaram ao Brasil, há três meses, os refugiados angolanos Francisco de Almeida Jorge, de 35 anos, e Manoel Capela, de 31, já trabalharam na limpeza de um restaurante, mas estão há 30 dias em busca de um novo emprego porque o contrato anterior se encerrou. Eles deixaram seu país, politicamente desgastado por longos períodos de guerras e conflitos armados, em busca de trabalho no Brasil para proporcionar uma vida melhor a eles e à família em Angola. E hoje também dão nome e cara aos números do desemprego no país.

Manoel atuava no setor de informática em seu país, mas reconhece que será difícil uma recolocação na área no Brasil. Já Francisco, que trabalhava em limpeza também em Angola, comenta que mesmo com poucos meses no país já sente a crise. “Há vagas, mas para conseguir o emprego é difícil”.

O plano mais imediato dos dois amigos é conseguir um trabalho para sair de uma igreja presbiteriana, onde estão alojados em Itaquera, na zona leste. A esposa de Manoel também veio para o Brasil e consegue alguma renda trançando cabelos, mas a remuneração ainda não é suficiente para que eles consigam um teto.

“(Queremos) qualquer vaga, a que der para trabalhar. Deus vai nos abençoar para conseguirmos trabalhar. Estamos a procura de trabalho para nos organizarmos e termos uma lugar para dormir”, ressalta Manoel. “Quero ajudar minha família e minha vida”, acrescenta Francisco.

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