Moradores de bairro na zona leste de São Paulo vivem há dez anos racionando água

Pelo menos 230 famílias da Vila da Glória nunca tiveram água encanada no chuveiro ou na torneira em suas casas

Sem rede de água ou saneamento básico, moradores implantaram um rodízio, que funciona há dez anos (Fotos: Danilo Ramos/RBA)

São Paulo – O que parece uma ação simples como lavar as mãos ou beber um copo d’água é um desafio para 230 famílias que vivem na Vila da Glória, um loteamento irregular na zona leste de São Paulo. Lá, não há água encanada. Há apenas um registro geral, que abastece os moradores. Cada um tem 20 minutos diários para encher quantos galões, garrafas e baldes conseguir. Essa será toda a água disponível para uso, até que chegue novamente seu horário, no dia seguinte.

A água que abastece a Vila da Glória vem por mangueiras convencionais, de uso doméstico, do bairro vizinho, chamado gleba. Tudo foi instalado pelos próprios moradores, assim como a rede de eletricidade e o calçamento das ruas. O rodízio da água também foi formalizado por eles e o revezamento é cumprido à risca.

“Meu horário vai das 11h às 11h20”, conta a moradora Ediane Moraes, que há dez anos comprou um lote no terreno ocupado, por R$ 10 mil. “Quando pego a água a primeira coisa é separar o que vamos usar para beber e cozinhar, depois para higiene. Tem dia que temos que comprar água.”

mangueira_vila da glória

Com a dificuldade, ela economizou e conseguiu comprar uma bomba que manda o líquido (precioso na Vila da Glória) para o chuveiro, para facilitar o banho. É uma regalia no bairro. A maioria dos moradores esquenta a água com uma resistência ligada na tomada, apelidada de “rabo quente”, e toma banho de balde e caneca. 

É assim que fazem a dona de casa Josefa Barbosa, o marido e os três filhos que vivem com ela. “Estou há dez anos sem água no chuveiro e na torneira. Usamos tudo dali”, diz, apontando um grande galão azul, onde armazena a água, fora de casa. “Chega no meio do dia e já acabou. Como comprar é caro, esperamos o dia seguinte”. 

Um pouco para dentro do bairro está a dona de casa Célia Gomes, lavando roupa. Ela conta que busca água e enche a máquina na mão, sozinha. “Tudo é difícil, até a construção da casa. Só conseguimos montá-la porque cada vizinho ajudou com um pouco de material” – e mostra a casa, feita de madeira, papelão e blocos de construção. “O terreno nós ganhamos”.

dona de casa lavando roupa_vila da glória

Lavar roupa, aliás, não é tarefa nada simples no bairro. Cada um tem de criar uma estratégia, como faz a dona de casa Jucélia Gomes. Apesar de guardar mais de dez garrafas de refrigerante, além de diversos galões, o que ela consegue de água nos seus 20 minutos não é suficiente para dar conta dos seus dez filhos, do marido e da nora, grávida de seis meses.

O jeito, então, foi usar a criatividade: ela posicionou uma caixa de água velha logo abaixo de uma telha brasilit inclinada, que ajuda a cobrir seu telhado. Assim, ela consegue aproveitar a água da chuva que escoa pela telha na atividade. “Mas assim a água que a senhora usa para lavar a roupa não é 100% limpa”, comentei. “Eu sei, mas as coisas aqui são difíceis mesmo, até pros meninos”.

“Eles já tomaram banho de chuveiro?”, perguntei. “A maioria não. Só os mais velhos. Aqui não tem nada para a gente. Até o posto de saúde fica longe. Quando vi que o meu mais novo [de apenas um ano] ia nascer, comecei a ir para o posto a pé, mas não deu tempo e o menino nasceu ali”, apontou para uma ladeira, “no meio da rua. Caiu direto no chão. Nasceu sozinho e guerreiro, igual a gente aqui”.