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Após 6 meses, números da covid-19 refletem descaso e sucessão de erros de Bolsonaro

Primeiro caso de covid-19 no país foi registrado em 26 de fevereiro. Negligência e prioridades erradas explicam as 117 mil mortes e 3,7 milhões de casos

Andrés Díaz
Andrés Díaz
Desde então, 117.665 mortos e uma história de fracasso do país sul-americano. No último dia, foram 1.085

São Paulo – O Brasil completa hoje (26), seis meses de pandemia de covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). Em 26 de fevereiro, foi registrado o primeiro caso oficial no país. Ele ocorreu na cidade de São Paulo – um homem de 61 anos, que tinha chegado de uma viagem pela Itália naquele mês; na época, o país europeu era o epicentro da pandemia no mundo. Desde então, o Brasil soma oficialmente 117.665 mortos, passa de 3,7 milhões de casos e acumula uma história de fracassos no combate à infecção.

De acordo com o levantamento do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), atualizado hoje, são 3.717.156 infectados, sendo 47.161 apenas nas últimas 24 horas. Neste período, foram mais 1.085 óbitos por covid-19. Pelas últimas 11 semanas, tempo que o Brasil ocupa o epicentro da pandemia no mundo, a doença deixa, em média, um rastro de cerca de mil mortos por dia.

Em números gerais, o segundo país mais afetado pela covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos. Para epidemiologistas, a explicação do morticínio reside em falhas sequenciais do poder público na contenção do vírus. Essencialmente, o país não contou com uma essencial coordenação nacional. Ao contrário, a atuação do governo federal, do presidente Jair Bolsonaro, acabou favorecendo o amplo contágio pelo vírus.

Descaso

Ainda no início do surto, Bolsonaro desdenhou da covid-19. Tal postura foi mantida durante todo a história da pandemia no país. “Gripezinha”, afirmou; “não sou coveiro”, disse questionado sobre as primeiras milhares de mortes, ainda em abril. Na época, o político disse que o novo coronavírus não deixaria mais mortos do que a H1N1, vírus gripal que, no auge de sua disseminação, em 2009, deixou pouco mais de 2 mil mortos.

Tal cenário de amplo descaso com a pandemia conta com conivência das demais instâncias do poder público que, inicialmente, adotaram discursos de responsabilidade com a vida da população. No início do surto, governadores e prefeitos, em sua maioria, decretaram medidas de isolamento social, ainda que pouco rigorosas. Tais ações foram criticadas duramente por apoiadores de Bolsonaro, que passaram a atacar, com toda a estrutura de fake news e difamação, os adversários políticos.

Mas, apontam especialistas, o grande responsável pela tragédia diária da pandemia no Brasil é mesmo Jair Bolsonaro. “O fracasso tem sido atribuído de forma desonesta a prefeitos e governadores. Eles também erraram, mas qualquer orquestra não funciona sem um maestro. Faltou no Brasil, sem dúvidas, a liderança do governo federal, do Ministério da Saúde. Falhamos. Não conseguimos fazer o controle da disseminação”, disse o epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Jesem Orellana.

Curva persistente

No fim de junho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu que a pandemia de covid-19 no Brasil havia parado de crescer de forma acelerada. Alertou, porém, que o país estava num patamar muito elevado de óbitos diários. Tal confirmação foi utilizada em larga escala por líderes regionais, que passaram a abandonar, ou flexibilizar, as frágeis medidas de isolamento social.

O resultado se mostra desastroso, ainda que as autoridades não admitam. Desde o início do abandono do isolamento social, o Brasil viu a curva de casos e mortes subir novamente. De fato, 70% das mortes pela doença no país foram registradas após tal movimento. Agora, as primeiras cidades mais afetadas pela covid-19 vivem o medo de uma segunda onda de letalidade; e isso, sem o Brasil deixar a primeira.

Curvas epidemiológicas de casos e mortos do Brasil revelam estabilidade da pandemia no pico de mortos. Fonte (Conass)

Lá fora

Não faltam exemplos opostos de sucesso no tratamento e prevenção da covid-19 no mundo. Um dos grandes destaques é Cuba. A ilha caribenha socialista é o único país latino-americano que trabalha no desenvolvimento de uma vacina. Os números do país também mostram o sucesso da medicina preventiva e do controle da disseminação do vírus.

Cuba tem 3.408 casos confirmados e 88 mortos. A ilha tem cerca de 11 milhões de habitantes, número semelhante à cidade de São Paulo – que tem mais de 11 mil mortos. “Eles têm uma fórmula simples. Eles não têm 1% da nossa estrutura médica hospitalar. Eles usam pesquisa, vigilância e monitoramento de assintomáticos. Não têm remédio, não têm vacina, mas têm uma população bastante consciente e, acima de tudo, um governo que soube conduzir de forma brilhante a epidemia”, argumenta Jesem.

Existem outros bons exemplos onde a responsabilidade do poder público e da sociedade resultaram em menos mortes e rápida reabertura da economia. Países liderados por mulheres se destacam no sucesso da gestão pública no combate à covid-19. Nova Zelândia (22 mortes), Alemanha (9.341), Taiwan (7 mortes) e Noruega (264) são exemplos. Estes países realizaram testes em massa e quarentenas rígidas para frear a doença. Outro ponto em comum entre essas nações é o forte sistema de assistência social, que promoveu cuidados com a população, protegendo vidas e economias.

Histórico

Neste período de seis meses, Bolsonaro coleciona ações que influenciaram o Brasil a chegar no atual estado de morticínio. Confira um breve histórico das ações do político durante esse período (atualizado de matéria especial publicada para marcar mais de 79 mil mortos, número que supera lotação máxima do Maracanã).

10 de março

  • Em viagem aos Estados Unidos, Bolsonaro disse que “muito do que tem ali é muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propaga”. Naquele momento o país tinha 10 mil casos e menos de 100 mortos.

12 de março

  • Quando o país chegou a 20 mil casos, Bolsonaro fez um pronunciamento. “O governo está atento para manter a evolução do quadro sob controle.” Passados quatro meses, investiu apenas 47% da verba total para enfrentamento da pandemia. No caso da saúde, foram apenas 45%.

13 de março

  • “Eu não sou médico, não sou infectologista. O que eu ouvi até o momento: outras gripes mataram mais do que esta”, disse o presidente, quando o país superou 15 mil casos.

16 de março

  • “Mas não é isso tudo que dizem”, disse Bolsonaro, enquanto prefeitos e governadores começavam a anunciar as primeiras medidas de isolamento social e fechamento do comércio.

22 de março

  • De forma totalmente errada, Bolsonaro compara a covid-19, que estava há menos de um mês no país, com o número de mortos do vírus H1N1, que matou 800 pessoas em 18 meses. “A previsão é não chegar a essa quantidade de óbitos no tocante ao coronavírus”, afirmou.

24 de março

  • Em pronunciamento na TV, Bolsonaro diz que a covid-19 é uma “gripezinha” e defende o “isolamento vertical”, para manter em quarentena apenas os idosos e doentes crônicos. Essa medida nunca foi reconhecida pela medicina.

29 de março

  • “Estou com vontade de baixar um decreto amanhã” para proibir prefeitos e governadores de decretar quarentenas e medidas de isolamento social. Naquele dia, o país tinha 4.309 casos confirmados e 139 mortos.

12 de abril

  • Em live com líderes religiosos, Bolsonaro desdenhou das mais de 1.200 mortes que o país atingira e disse que “parece que está começando a ir embora essa questão do vírus”.

16 de abril

  • Bolsonaro demite o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que defendia o isolamento social. Nelson Teich assume e deixa o ministério menos de um mês depois. O general Eduardo Pazuello, interino, vai ficando no cargo.

17 de abril

  • “Então, essa briga de começar a abrir para o comércio é um risco que eu corro, porque, se agravar, vem para o meu colo”, disse.

20 de abril

  • Em uma semana, o país dobrou o número de mortes pela covid-19, chegando a 2.575. Mais uma vez o presidente desdenhou: “Eu não sou coveiro”.

28 de abril

  • Apenas oito dias depois, o Brasil chegou a 5 mil mortes. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”, respondeu Bolsonaro, quando questionado pela imprensa.

7 de maio

  • “Vou fazer um churrasco no sábado aqui em casa. Vamos bater um papo, quem sabe uma ‘peladinha’”, disse Bolsonaro, um dia antes do país chegar a 10 mil mortos pela covid-19.

19 de maio

  • Várias vezes Bolsonaro defendeu o uso de medicamentos sem qualquer eficácia comprovada contra a covid-19. No dia que o Brasil registrou mais de mil mortes em 24 horas pela primeira vez, o presidente fez uma live em tom de deboche e às gargalhadas para exaltar a cloroquina. “Toma quem quiser, quem não quiser, não toma. Quem é de direita toma cloroquina. Quem é de esquerda toma Tubaína.”

2 de junho

  • Ainda sem ministro da Saúde, sem política de enfrentamento da pandemia e sem aplicar a verba destinada a combater o coronavírus, Bolsonaro vê o país superar a marca de 30 mil mortos. “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”, disse, como se não fosse responsabilidade do presidente trabalhar para evitar as mortes.

6 de junho

  • Para dificultar o trabalho da imprensa na divulgação dos dados de casos e mortes pela covid-19, Bolsonaro manda tirar do ar o site com as informações sobre a pandemia. “Acabou matéria no Jornal Nacional“, comemorou.

25 de junho

  • O país supera a marca de 55 mil vidas perdidas. Bolsonaro novamente fala contra o isolamento social e defende a reabertura da economia. “Não podemos ter aquele pavor lá de trás, que chegou junto à população e houve, no meu entender, um excesso de preocupação apenas com uma questão (a saúde) e não podia despreocupar com a outra (a economia).”

3 de julho

  • Bolsonaro veta a obrigação de uso de máscara em estabelecimentos comerciais, indústrias, igrejas, templos, escolas e universidades. O uso de máscara é uma das principais medidas de segurança individual contra o coronavírus.

16 de julho

  • 76 mil mortos. Bolsonaro diz novamente que está havendo exagero com a pandemia e se exime de responsabilidade. “Alguns acham que tinha como diminuir o número de óbitos. Diminuir como?”

17 de julho

  • Um grupo de médicos de várias áreas responde a Bolsonaro sobre o que poderia ser feito para diminuir o número de mortes: políticas nacionais de isolamento social, ampla testagem, rastreamento de contatos, fortalecer o sistema de saúde, contratar mais profissionais, incentivar o uso de máscaras, entre outros. Nenhuma dessas ações foi tomada.

22 de julho

  • Bolsonaro confirma positivo para covid-19 após duas semanas do primeiro teste para a doença. Mesmo contaminado, o presidente promove e participa de aglomerações e segue na defesa da cloroquina, medicamento comprovadamente ineficaz contra a doença..

24 de agosto

  • Um dia após atacar um jornalista que questionou sobre suspeitas de corrupção envolvendo sua família, Bolsonaro usa a covid-19 para promover mais um ataque à imprensa. “Era um jovem aspirante do Exército Brasileiro, tinha 23 anos, sempre fui atleta das Forças Armadas. Aquela história de atleta, né, que o pessoal da imprensa vai para o deboche, mas quando pega (covid-19) num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”, disse.