"gripezinha"

Brasil: 113.358 mortos pela covid-19. ‘Fracasso não é por acaso’, aponta cientista

Epidemiologista da Fiocruz aponta que o Brasil pode ter passado de 180 mil mortes causadas pela covid-19. Má gestão do governo federal explica a tragédia

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Até aqui, a história da pandemia se resume a uma sequência de erros e más condutas, especialmente por parte do governo federal, personificado na figura de Jair Bolsonaro

São Paulo – “Trem sem maquinista não chega em seu destino. País sem gestão paga o preço. Estamos pagando o preço pelo governo ter ignorado e minimizado a covid-19“, sentenciou o epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Jesem Orellana. Hoje (21), o Brasil teve 1.054 mortos pela covid-19. O país chegou a 113.358 mortos desde o início do surto, em março.

Com o acréscimo de 30.355 contaminados no último período, o Brasil chegou a 3.532.330 infectados pela doença. Isso, sem contar a subnotificação, estimada em dezenas de milhares de casos e óbitos. “É muito provável que já tenhamos passado de 180 mil mortes diretas e indiretas devido à pandemia de covid-19 no Brasil. É uma situação bastante triste”, denuncia Jesem. O Brasil é um dos países que menos testa para o vírus no mundo.

“Um time de futebol que troca de técnico três vezes em três meses é sério candidato ao rebaixamento. É um sinal claro do fracasso da gestão da pandemia no Brasil”

Até aqui, diz o especialista, a história da pandemia se resume a uma sequência de erros e más condutas, especialmente por parte do governo federal, de Jair Bolsonaro. ” A condução tem total diferença. Menos de 100 dias depois do primeiro caso no país, estávamos no terceiro ministro da Saúde. Um time de futebol que troca de técnico três vezes em três meses é sério candidato ao rebaixamento. É um sinal claro do fracasso da gestão da pandemia no Brasil”, disse.

Dados da covid-19, de acordo com o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass)

Fator Bolsonaro

Bolsonaro demitiu dois ministros da Saúde: Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. As duas demissões tiveram motivação similar; os ex-ministros, com formação na área médica, rejeitaram a posição do presidente de ignorar e ridicularizar a ciência. Entretanto, Jesem não poupa críticas a Mandetta que, deputado pelo DEM, foi grande defensor da Emenda Constitucional 95, que impôs um teto para os investimentos públicos que sufoca o sistema de saúde.

“Faço questão também de apontar que o Mandetta foi fervoroso defensor da EC 95 e hoje, como uma raposa travestida de ovelha, defende o SUS como se fosse um membro da reforma sanitária brasileira. A emenda fragilizou demais nossa capacidade de resposta rápida para eventos de grande magnitude. Essa emenda tirou muita verba da saúde. Agora temos um projeto orçamentário que prevê o corte (em 2021) de mais de 30 bi da Saúde nos próximos anos. Isso nos faz entender o porquê de mil mortes diárias”, observou.

Enquanto retira dinheiro da ciência e da educação e direciona para a defesa, Bolsonaro segue incentivando aglomerações, perseguiu governadores que adotaram posturas contrárias às suas e mantém a ideia fixa de receitar o medicamento cloroquina, como “solução mágica” para o problema. A substância não é eficaz, de acordo com inúmeros estudos de todo o mundo.

Fracasso

No início do surto, Bolsonaro chegou a dizer que a covid-19 não passava de “uma gripezinha” e que o Brasil não teria mais de 2 mil mortos, número de vítimas da pandemia de H1N1 em seu pior ano, 2009. Agora, com o completo fracasso na contenção do vírus, Bolsonaro ataca governadores, prefeitos, juízes, partidos de oposição. Não passa de manobra retórica, como afirma Jesem.

“O fracasso do Brasil tem sido atribuído de forma desonesta a prefeitos e governadores. Eles também erraram, mas qualquer orquestra não funciona sem um maestro. Faltou no Brasil, sem dúvida, a liderança do governo federal, do Ministério da Saúde”, resumiu. Jesem participou hoje de seminário para pós-graduandos da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), com o tema Panorama das epidemias de covid-19 no Brasil: a experiência de Manaus, do cenário caótico ao desconhecido.

Prevenção

Parte deste fracasso, além do desgoverno do presidente, consiste na falta de capacidade estratégica de prevenção. “Falhamos. Não conseguimos fazer o controle da disseminação. Até hoje temos enorme dificuldade em falar no padrão da pandemia em populações remotas”, afirma o cientista.

Medidas de controle de contágios, aliada à medicina preventiva, poderiam desafogar o sistema de saúde e evitar, inclusive, gastos adicionais com leitos. “Se você controla a disseminação do vírus na comunidade, nas cidades, nos bairros, nas fábricas, você não precisaria abrir um enorme número de leitos e hospitais de campanha. Mas não qualificamos a atenção básica. A atenção hospitalar foi uma bagunça. Não tínhamos quantitativo suficiente de profissionais especializados para trabalhar em UTIs.”

O cientista lembra que o Brasil não foi pego de surpresa. O continente sul-americano foi um dos últimos afetados pela covid-19, que já mostrava seu potencial de letalidade na Ásia e, especialmente, na Europa. “Não foi falta de aviso. O que faltou para países, como o Brasil, foi planejamento, infraestrutura de vigilância, laboratorial. Faltou atuarmos de forma antecipada. Faltou pautarmos nossa atuação no princípio da precaução. O governo brasileiro minimizou a pandemia e tornou-se motivo de chacota. Bolsonaro é um exemplo bastante ilustrativo, ele fez e segue fazendo várias falas neste sentido.”

Exemplo internacional

Jesem destaca que “oportunidade é a chave para atuar em pandemias e nós não soubemos lidar de forma oportuna e precisa”. Enquanto isso, bons exemplos no mundo existem. Países que souberam controlar a covid-19 em seus territórios, mesmo sem a existência de uma vacina ou remédio específico. Os números revelam isso.

“Veja, Wuhan (primeiro epicentro da covid-19 no mundo) aprendeu a se comportar apropriadamente diante deste novo inimigo. Hoje eles têm festas, piscinas lotadas. A China comemora o controle temporário da pandemia e nós estamos enclausurados em uma terrível crise sanitária.Se eu fosse responsável pela província de Wuhan não autorizaria este evento. Mas é um sinal de que eles conseguiram lidar e estão se arriscando”, disse sobre evento na cidade que ganhou manchetes do mundo na semana passada

A província de Hubei, unidade chinesa cuja capital é Wuhan, tem 68.135 casos de covid-19 e 4.512 óbitos, sem registro de contágio local nos últimos dois meses. Outro exemplo de sucesso é a ilha de Cuba. Com 3.408 casos e 88 mortes, o país socialista tem menos recursos técnicos hospitalares do que o Brasil. Entretanto, possui consciência da população e capacidade de medicina preventiva.

O exemplo cubano

No contexto, Cuba se destaca. “Eles têm uma fórmula simples. Eles não têm 1% da nossa estrutura médica hospitalar. Eles usam pesquisa, vigilância e monitoramento de assintomáticos. Não têm remédio, não têm vacina, mas têm uma população bastante consciente e, acima de tudo, um governo que soube conduzir de forma brilhante a epidemia”, comentou Jesem.

Além de lidar muito bem com a situação, Cuba ainda exporta solidariedade por meio de seus médicos. “Não por acaso, Cuba lida com a pandemia em seu território e ajuda outros países. Mandou missões para a Itália, condecorados pelo governo europeu. Aqui, vimos acusações de que esses médicos eram bárbaros. Ao contrário disso, eles são heróis que ensinam a humanidade a lidar com problemas complexos e soluções simples.”


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