Sem medo da polêmica

Impulsionada por uma agenda pró-direitos sociais, a Frente Ampla pauta no Parlamento uruguaio e na sociedade o comércio de maconha, a união homoafetiva e o aborto

Mulheres fazem manifestação no centro de Montevidéu. Legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo deve ser aprovada no início deste ano

O pequeno vizinho ao sul do Brasil, com 3,3 milhões de habitantes, fez barulho no ano que passou. O Parlamento do Uruguai aprovou ou começou a discutir leis sobre temas ainda polêmicos, como interrupção de gestação, matrimônio entre pessoas do mesmo sexo e comercialização (estatal) de maconha. 

Para os ativistas, independentemente de números ou indicadores sociais, predomina um argumento central da cidadania. Presidenta da Frente Ampla, o partido governista, a senadora Mónica Xavier, médica de formação, diz que foi “por direitos” – e não por outros motivos – que se discutiu durante mais de duas décadas a despenalização do aborto.

“A luta pelo aborto, historicamente, tem a ver com o reconhecimento de que essa é uma das dimensões mais profundas da opressão às mulheres; o controle sobre seu corpo, sua capacidade reprodutiva tem sido uma das áreas de maior domínio patriarcal. Então, não é só que as mulheres não devem morrer por causa do aborto. As mulheres devem ser reconhecidas em seu direito pleno de decidir se querem ou não querem ser mãe”, argumenta a ativista Lilián Bracinskas, diretora da organização não governamental Mulheres e Saúde do Uruguai (Mysu).

Entre lideranças do movimento que defendem a legalização do casamento igualitário entre casais héteros e homoafetivos – que deve ser aprovada no Senado no início deste ano –, a morte de cinco transexuais em 2012 causa apreensão. “Estamos muito preocupados em saber o que é. Se é um psicopata, se é um grupo organizado, ou se é um incremento da violência social. Mas não acontecia antes”, diz o pesquisador e diretor do movimento Ovejas Negras, Diego Sempol.

Marcha dos valores

“Aqui, a violência não é algo tão presente. É diferente do Brasil, que tem resquícios da escravidão”, argumenta Sempol, sem precisar consultar nenhum dos diversos livros sobre a história do Brasil presentes em suas estantes. 

Essa intolerância à violência parece ser a razão central para o avanço da discussão sobre a regularização do comércio da maconha. O projeto apresentado pelo presidente uruguaio, José “Pepe” Mujica, é ousado. Segundo sua proposta, o Estado passaria a produzir, comercializar e controlar o cultivo da planta. 

No Uruguai, não é permitido vender, produzir ou cultivar drogas. O usuário, porém, não é considerado criminoso. A erva é consumida socialmente, em mesas de restaurantes dispostas nas calçadas, nos pontos de ônibus, sempre às claras, e não em locais marginalizados, como nas cidades brasileiras. Ainda assim, é mais comum ver o uruguaio c

Por direitosonsumindo mate, uma infusão parecida com o chimarrão, do que alguma droga ilícita.

“Para nós, não se trata de uma liberação, mas de uma regulação. Porque o que vamos fazer com a cannabis é dizer: ‘Bom, no Uruguai se consome maconha. O mercado que controla isso é o narcotráfico e a ideia é que possamos regular isso de forma legal’”, argumenta o deputado Sebastian Sabini, presidente da Comissão de Educação e Cultura e da Comissão Especial de Vícios e Drogas, além de relator do projeto da maconha e do casamento igualitário. “Uma legalização seria dizer que qualquer um poderia comprar, produzir, vender, fazer um negócio com a marijuana. E não é isso que estamos fazendo. O que estamos fazendo é criar um marco de atuação para os que querem consumir, comprar, vender e produzir”, defende.

O argumento principal em favor do projeto em tramitação é combater um “mal maior”, o crack, apontado como responsável pelo recente aumento da violência. “O consumo começou em 2002, por causa da crise econômica. Assim, a maconha passou a ser vista como a cura para um problema maior”, contextualiza o sociólogo e militante pró-liberação Diego Pietre. Segundo ele, o Uruguai tem uma das leis mais rígidas do mundo contra o tabaco e debate o aumento das penas para traficantes de crack.

Política com base

Apesar da fama internacional, Mujica tem por vezes sua capacidade como gestor questionada. “Pepe não sabe nada sobre esses assuntos”, afirma Sempol. “O que acontece é que o trabalho político não está sendo feito por Mujica, e sim  por diferentes setores da Frente Ampla”, observa.

PEPE não sabe nada

A Frente Ampla é o partido de Mujica, mas sua essência popular e de forte base social se sobrepõe aos apelos personalistas de suas principais lideranças. Fundada em 1971, a agremiação reúne diversas correntes de esquerda e chegou ao comando do país pela primeira vez em 2005, com a vitória de Tabaré Vázquez. Cinco anos depois, o Uruguai deu à Frente Ampla a maioria das cadeiras de deputados e senadores e elegeu um ex-guerrilheiro e prisioneiro político que passou 14 anos encarcerado durante a ditadura de seu país, entre os anos 1970 e 1980.

O grande mérito do atual presidente, apontam lideranças de movimentos sociais, é seu compromisso de sancionar o que for aprovado nas casas legislativas. É uma diferença fundamental entre Mujica e seu antecessor, que em 2008 vetou todos os capítulos que tratavam sobre aborto no projeto de lei de saúde sexual e reprodutiva, cujo texto atendia totalmente às demandas apresentadas pelos movimentos sociais, em especial dos feministas. 

“Pepe é um presidente que está disposto a resolver os problemas evidentes com propostas racionais. Ele não tem nada a perder e prefere enfrentar os problemas a fingir que não existem. Ele não vai vetar nenhuma lei que saia do Legislativo. Isso é uma diferença em relação a Tabaré”, destaca Sabini.

Mas o grande motor das mudanças em curso no Uruguai parece ser a força da base social que levou a Frente Ampla ao poder. Sem se deixar cooptar pelo governismo, ela exige o avanço da agenda pró-direitos sociais, formando uma espécie de bancada informal denominada “Pró-Direitos” que pauta e pressiona e Congresso. E não faz concessões. As feministas, por exemplo, insatisfeitas com a mudança de foco da lei do aborto, prometem fazer a Frente Ampla “sentir os custos políticos” de uma “traição”. 

A lei aprovada prevê que a mulher passe por consulta com ginecologista, psicólogo e assistente social antes de poder fazer um aborto. A missão desses profissionais é apresentar alternativas à interrupção da gravidez.

PEPE não Tem nada a perderPara os militantes, a lei perdeu o foco, que era o direito de a mulher decidir sobre seu corpo. “Havia condições para aprovar outra lei. Mas a Frente preferiu esse texto mesquinho que não respeita a luta histórica dos movimentos sociais”, critica a feminista Lilián. 

O texto final foi modificado para conseguir apoio de parlamentares de outros partidos, já que dois legisladores da Frente Ampla alegaram impedimentos de consciência e não seguiram a orientação do partido nessa matéria.