Saúde

Persistem os sintomas e médicos continuam sendo procurados

Entidades que representam médicos – aqueles que juram trabalhar pela vida e a saúde da população – fazem oposição feroz a programa criado para atendimento a regiões que mais precisam

danilo ramos/rba

Cirlene dos Santos, do Jardim Cocaia: “Das nove consultas de pré-natal que eu deveria fazer, fiz só cinco”

Icaivera é um bairro carente de Betim, quase na divisa com Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. O serviço público é a única opção para mais de 95% de seus 20 mil habitantes. Desde o começo deste ano, porém, a Unidade Básica de Saúde (UBS) local conta com apenas dois médicos. Um deles atende diariamente por quatro horas; o outro trabalha por oito horas, sozinho, à frente de duas equipes do Programa Saúde da Família (PSF). Não há pediatra nem ginecologista. O jeito é buscar atendimento na cidade vizinha ou tomar três conduções até o centro de Betim, a 35 quilômetros. Muitas situações que poderiam ser prevenidas e cuidadas ali acabam sobrecarregando o pronto atendimento em outras localidades. “Houve concurso, mas os médicos optam por vagas em bairros mais próximos, de fácil acesso”, diz o farmacêutico Rilke Novato Públio, integrante do Conselho Municipal de Saúde.

Nas periferias de São Paulo, maior cidade do estado mais rico, a população mais pobre também sofre com a falta de médicos. “Das nove consultas de pré-natal que eu deveria fazer, fiz só cinco. E nunca tinha pediatra para atender meu filho de 3 anos. Até hoje, se ele passou por seis consultas, foi muito”, reclama a dona de casa Cirlene dos Santos, moradora do Jardim Cocaia, no extremo sul da cidade, a 31 quilômetros do centro.
“Temos três vagas de clínico geral e estamos sem nenhum. Dois estão de licença, um foi embora e não há previsão de quando serão repostos. Eles são a base do atendimento”, lamenta um funcionário de um complexo de saúde na região, que prefere não se identificar. Na sala de espera, usuários reclamam que a falta de clínico geral já dura um ano.

A história é semelhante em Itaquera, na zona leste, a 22 quilômetros do centro. Ao procurar pediatra para sua filha de 4 meses, a dona de casa Maria Aparecida da Silva foi em vão a duas unidades de Assistência Médica Ambulatorial (AMA), Santa Marcelina e Hospital Planalto. “Disseram que não tinha e era possível encontrar lá para os lados do Belém”, conta, referindo-se a outro bairro da região. “Todo mundo que chegava voltava com as crianças, porque eles já iam avisando, da porta mesmo, que não tinha pediatra e não tinha como atender.”

Na mesma localidade, a vendedora Maria Fabiana dos Santos Costa espera para fazer uma ressonância magnética. “Estou doente há quase três anos, piorando. Fico em cima da cama sem poder andar.” Pela consulta com o ortopedista que pediu o exame ela esperou mais de dois anos. “Enquanto isso o caso só piora, não ando mais e estou com depressão porque não posso nem sair da cama sem ajuda.”

Atendimento à deriva

A falta de médicos, que deixa unidades de saúde ociosas e crianças, adultos e idosos sem atendimento, ou amontoados em corredores, é um dos maiores problemas dos gestores de saúde no Brasil. Especialmente daqueles de cidades pequenas do interior do país ou de periferias mais distantes e carentes das regiões metropolitanas. Tanto que foram pedir ajuda ao Ministério da Saúde, que no final do ano passado criou o Programa de Valorização dos Profissionais na Atenção Básica (Provab).

Supervisionado por uma instituição de ensino, o médico participante recebe bolsa federal de R$ 8 mil mensais por 12 meses e bônus para os exames de residência médica com o compromisso de se especializar em saúde da família. Mas a adesão não supriu a necessidade. Conforme o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), mais da metade dos 2.867 municípios que recorreram ao Provab não conseguiu sequer um médico. A adesão foi mínima no Acre, onde a carência é maior.

A pequena Capixaba, a 77 quilômetros de Rio Branco, na divisa com a Bolívia, com 8.800 habitantes, pediu quatro médicos e atraiu um. Pior sorte teve Epitaciolândia, a 243 quilômetros da capital acreana, 15.200 habitantes, também na divisa: tem três vagas e não conseguiu ocupar nenhuma. Conforme o Ministério da Saúde, o Brasil tem, em média, 1,8 médico para cada mil habitantes, menos que Venezuela (1,9), México (2,4), Argentina (3,2) e Cuba (6). Faltam clínicos, pediatras, anestesiologistas, psiquiatras, neurologistas, neurocirurgiões, cardiologistas, radiologistas e nefrologistas.

Em maio passado, o ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, anunciou que negociava com Cuba um acordo para trazer ao país 6 mil de seus médicos. Logo se manifestaram entidades como o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Federação Nacional dos Médicos (Fenam), segundo as quais não faltam profissionais – eles estariam mal distribuídos, concentrados em regiões mais ricas, em centros bem equipados, com melhores condições de trabalho.

O posicionamento contou com apoio de 63 outras entidades regionais e de âmbito nacional de diversas especialidades e áreas da saúde, além da Ordem dos Advogados do Brasil e da Força Sindical. Meses antes, as corporações médicas tinham criticado mudanças no exame de revalidação do diploma de médicos formados no exterior, o Revalida. Segundo analistas, o decreto que o criou determina provas teóricas abrangentes e práticas conduzidas com pacientes simulados.

Reprovação anunciada

Na realidade, a prova elaborada sempre pela mesma elite do corporativismo médico brasileiro, sem avaliação de conflitos de interesse, reprova mais de 90% dos candidatos já no teste de múltipla escolha, a primeira etapa. “Por que brasileiros passam em exames nos Estados Unidos e americanos não passam no Revalida brasileiro? É porque tem alguma coisa errada”, diz o conselheiro consultivo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) Heleno Rodrigues Correa Filho, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Com as manifestações de junho, que reivindicavam também melhorias na saúde, a presidenta Dilma Rousseff foi à TV e propôs a contratação de médicos como medida emergencial para reduzir o déficit. Sem a pretensão de resolver, numa canetada só, todos os problemas do setor – marcado sobretudo pelo financiamento insuficiente –, o governo anunciou no começo de julho o Programa Mais Médicos.

Previsto para durar três anos, podendo ser prorrogado pelo mesmo período, vai pagar bolsa mensal de R$ 10 mil, mais ajuda de custo e passagens para a instalação do médico inscrito. Para aproximar o estudante de medicina da comunidade, melhorando o treinamento em serviço, exclusivamente na atenção básica e urgência e emergência, com supervisão, propõe mudanças na graduação. Além disso, prevê a criação de 11.400 novas vagas até 2017, das quais 3.600 em universidades públicas e 7.800 na rede privada. Médicos estrangeiros, para trabalhar nos locais de maior demanda, só serão contratados para vagas não preenchidas pelos brasileiros.

Saíram em defesa da iniciativa o Conselho Nacional de Saúde, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e prefeitos e secretários da área que sentem na pele a dificuldade para contratar médicos. Consideraram as medidas coerentes com resoluções e recomendações da Opas à cobertura universal, fortalecimento da atenção básica e primária e equidade na atenção à saúde da população.

Usuários do sistema público de saúde também apoiam o programa. “É claro que precisamos de mais infraestrutura para melhorar o atendimento, mas não adianta inaugurar hospital todo equipado se não tiver profissionais para trabalhar. Além disso, muitos dos estudantes de medicina não entendem bem o que significa saúde pública, são formados para uma medicina curativa, e não preventiva, como deve ser o SUS”, diz o coordenador dos movimentos populares de saúde de São Paulo, Frederico Soares de Lima.

Longe do necessário

Uma pesquisa do professor da Universidade Federal do Tocantins (UFTO) Neilton Araujo de Oliveira, para conhecer o pensamento e expectativas dos alunos que se formam, constatou que apenas 5% desejam trabalhar em cidades pequenas do interior do país, onde a carência é maior; somente 20% querem atuar em clínica geral, como no Programa Saúde da Família; e 63%, serem especialistas. Outro dado interessante é que, embora 60% tenham informado haver aulas práticas em UBS e hospitais do SUS, somente 21% declararam a existência de atividades comunitárias durante sua formação.

Durante debate sobre o tema no programa Melhor e Mais Justo, da TVT, que foi ao ar em 18 de julho, a médica e diretora da regional paulista da Associação Brasileira de Educação Médica Lúcia Christina Iochida criticou o governo. “Colocar médicos em regiões carentes sem condições adequadas para trabalhar não vai resolver o problema. E como vão mexer nos cursos sem consultar os que formam médicos?”, questionou. Dois dias antes, enquanto médicos, em protesto, faziam o enterro simbólico da presidenta e do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, anunciou a criação de uma comissão formada por diretores de faculdades federais e coordenadores de cursos de medicina para aprimorar pontos do programa.

As reações da corporação foram além, com ações no Supremo Tribunal Federal (STF) que argumentam “falta de urgência e relevância do programa” e questionam a vinda de médicos estrangeiros. E, pela primeira vez, partiram para o confronto direto. No dia 19, anunciaram a saída de seus integrantes de postos ocupados em comissões e câmaras do Ministério da Saúde, Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

“O rompimento é lastimável, um erro político. O CNS não é governo, e sim um órgão representativo da sociedade brasileira, com 144 integrantes, que debate a saúde pública. Os médicos deixam esses fóruns num momento em que deveriam ficar ao lado da sociedade que vai às ruas para defender melhorias na saúde pública”, avaliou a presidenta do Conselho Nacional de Saúde, Maria do Socorro de Souza, por telefone, direto de uma aldeia Xavante que visitava. A principal queixa que se ouvia ali: falta de médico.

Colaboraram Sarah Fernandes e Júlia Rabahie

 

Especialistas em debate na TVT

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Especialistas em debate

O prós e contras do “pacto pela saúde”, convocado pela presidenta Dilma Rousseff como resposta às manifestações de junho, e as virtudes e os defeitos do Programa Mais Médicos, proposto em seguida pelo governo federal, foram tema de debate levado ao ar pelo programa Melhor e Mais Justo, da TVT, em 18 de julho.
Participaram da discussão o presidente da Associação dos Médicos Residentes do Estado de São Paulo, Pablo Kokay Valente, o coordenador dos médicos de Urgência e Emergência da Secretaria de Saúde de Mauá (região do ABC paulista), Vagner Gilioti Júnior , a presidenta da Associação Paulista de Medicina – Regional Santo André, Alice Lang, e a professora da USP Lúcia Christina Iochida, diretora da Associação Brasileira de Educação Médica. A íntegra do programa, de 40 minutos de duração, pode ser vista no site da emissora: www.tvt.org.br/melhor-e-mais-justo.
Os desafios do exercício da medicina e a consistência da prova de avaliação do Conselho Regional de Medicina de São Paulo também foram temas de reportagem especial do ABCD em Revista em 10 de julho. O programa entrevistou médicos, professores, estudantes, entidades, população e governos. E também pode ser acessado no site www.tvt.org.br/abcd