Marcio Pochmann

Nós e nosso caminho no mundo

Redução de gastos com juros, nos últimos dez anos, ajudou a proteger a a renda e a população vulnerável. Os acertos dessa missão revelam que ela precisa continuar e avançar

DIVULGAÇÃO/PAC2

O Brasil, desde o início da década de 2000, vem conseguindo, pela primeira vez em sua história, combinar ampliação da renda por habitante com a redução de desigualdade na distribuição pessoal da renda do trabalho

O Brasil registrou uma das trajetórias mais exitosas do desenvolvimento capitalista mundial no século 20 em termos de expansão de suas forças produtivas e transformação da estrutura social. Mas ingressou no final do século numa fase de regressão socioeconômica das mais graves de sua história. Entre os anos 1980/90, caiu cinco posições, para a 13ª, no ranking econômico mundial, elevou sua população desempregada de 2 milhões para 11 milhões, diminuiu a participação dos salários na renda nacional de 50% para 39% e manteve relativamente estabilizada a desigualdade de renda e a pobreza.

A interrupção do longo ciclo de crescimento iniciado na década de 1930 ocorreu a partir da explosão da crise da dívida externa. Logo no início dos anos 1980, com a opção pelo ajuste exportador e a contenção do mercado interno, a subordinação da política econômica aos interesses dos detentores da riqueza financeira e dos setores geradores de divisas internacionais passou a predominar. O resultado final foi a capitulação do projeto de construção do Estado nacional burguês, especialmente na década de 1990, quando a hegemonia neoliberal internalizou o receituário proveniente do Consenso de Washington.

Na década passada, o país retornou ao grupo das sete mais importantes economias globais, tornou-se o segundo maior exportador mundial de produtos agrícolas e o sexto na produção global de manufaturas, conforme informações das Nações Unidas. A pobreza e a desigualdade declinaram sensivelmente, ao mesmo tempo em que o mercado de trabalho registra certa escassez de mão de obra, somente comparável à primeira metade da década de 1970.

Mesmo com o êxito alcançado na recuperação econômica com inclusão social no período recente, prevalecem, ainda, desafios a serem enfrentados, como o exercício da liderança de um novo projeto de desenvolvimento ambientalmente sustentável e com grandeza civilizatória. Inicialmente por conta de uma nova geografia produtiva mundial que se estabelece em meio à crise capitalista de dimensão internacional.

O movimento de deslocamento da produção de manufatura do mundo para a Ásia, iniciado com o forte desenvolvimento industrial japonês desde o fim do segundo pós-guerra, passou pela década de 1980 com o avanço de outros países asiáticos, como Taiwan, Cingapura e Coreia do Sul. Dez anos depois, a China assumiu a proeminência da expansão econômica sustentada pela produção de manufatura mundial, o que permitiu responder por quase 15% dela (eram 2,5% em 1990). Para o ano de 2020, projeta-se uma participação da Ásia próxima à dos países desenvolvidos. Estes, por sinal, apresentam desde a década de 1990 uma queda continuada na participação relativa da produção global de manufatura. No ano de 2010, por exemplo, o peso dos países desenvolvidos no valor global da manufatura foi de 66,2%, ante 81,5% em 1990.

Na América Latina, sabe-se que o desempenho econômico distanciou-se da trajetória asiática. O processo de abertura comercial e de integração passiva à globalização desde o final da década de 1980 resultou na redução relativa de sua participação na produção industrial global, ao mesmo tempo em que terminou reforçando a especialização de sua estrutura produtiva nos setores de maior conteúdo de recursos naturais e montagem de componentes vindos de fora. Neste início do século 21, a participação do continente em relação ao mundo vem se reduzindo, chegando a 6,3% em 2010 (em 1990 alcançava 7,3%).

Diante do curso da nova divisão internacional do trabalho, caberia ao Brasil o exercício de maior reposicionamento interno no seu conjunto das forças produtivas. As opções econômicas nesse sentido permitiram manter em alta o nível de emprego e rendimentos dos trabalhadores por meio de políticas públicas. O êxito dessas opções, no entanto, é ainda parcial, uma vez que não foi suficiente para o desencadeamento de um novo bloco de investimentos em diversos setores da economia nacional – que permitisse hoje ao país poderia se apresentar mais confiante em termos de sua participação nas cadeias globais de produção. Ainda assim, o sentido socioeconômico geral das mudanças estabelecido no seio do capitalismo brasileiro permaneceria distinto do verificado nos últimos 50 anos, especialmente na comparação com a fase dos governos neoliberais do final do século 20.

O Brasil, desde o início da década de 2000, vem conseguindo, pela primeira vez em sua história, combinar a maior ampliação da renda por habitante com a redução no grau de desigualdade na distribuição pessoal da renda do trabalho. A recuperação na participação do rendimento do trabalho na renda nacional compôs um quadro de diminuição do desemprego e de crescimento do emprego formal.

A natureza geral das atuais mudanças sociais encontra-se associada às transformações na estrutura produtiva, com crescente impulso do setor terciário, sobretudo à geração de postos de trabalho. De maneira geral, o maior saldo líquido das ocupações abertas na década de 2000 concentrou-se naquelas de baixa remuneração, ao redor do salário mínimo nacional, o que abriu inegável horizonte de oportunidades de trabalho e renda a enorme segmento social esquecido secularmente.

Combinado com a recuperação do valor real do salário mínimo, a recente expansão das vagas de salário de base permitiu absorver enormes parcelas de trabalhadores de baixa renda, o que favoreceu a redução sensível da taxa de pobreza em todo o país. Ao reduzir em mais de três pontos percentuais do PIB os gastos com juros da dívida pública, fruto da transição da macroeconomia da financeirização da riqueza para a lógica da produção e consumo, ocorreu o fortalecimento da política social de sustentação da renda e proteção para a população vulnerável.

Tudo demonstra o quanto a inflexão brasileira a partir da primeira década do século 21 resultou em mudanças socioeconômicas importantes. O Brasil parece seguir um caminho próprio após a grande noite neoliberal de regressão social e econômica do país.

As tarefas estão postas. Precisam continuar a ser implementadas.