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Buscar o topo, de pés no chão. Uma terapia que dá certo

O sucesso de iniciativas terapêuticas no sistema prisional de Rondônia demonstra que a recuperação de um detento passa pelo reconhecimento do crime como patologia social. E requer vontade política

O Topo do Mundo é  mais do que um relato verídico dos acontecimentos que resultaram em crimes, mas traz processos psicológicos de dor, medo, vaidade e vingança contra si e contra 
os outros <span>(Ana Mendes)</span>Untitled-1.jpg <span></span>Reabilitação: 65% dos que passaram pelo projeto não voltam para a criminalidade 
 <span>(Gláucio Dettmar/ AgÊncia CNJ)</span>A atriz Maria Geovana é a única mulher do elenco <span>(Ana Mendes)</span>Fernando Gonzáles interpreta o diabo e Ailton Caetano é o cavalo <span>(Ana Mendes)</span>Ensaio de coreografia com o assistente de direção Reginaldo Vieira <span>(Ana Mendes)</span>O diretor Marcelo Felice ensaia grupo de O Topo do Mundo <span>(Ana Mendes)</span>

O que levou São Luís às manchetes dos jornais no último mês foi um genocídio anunciado. Detentos vivendo em uma penitenciária superlotada no Maranhão e completamente abandonada pelo poder público eclodiram uma guerra que não tem fim. Após a divulgação de relatório produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dando conta de 60 pessoas mortas no Complexo de Pedrinhas em 2013, a reação foi óbvia: a Justiça maranhense exigiu a construção de novos presídios e fixou prazos para a nomeação de mais agentes penitenciários. Essas e outras medidas paliativas fazem parte também de um plano de emergência apresentado pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e pela governadora do Maranhão, Roseana Sarney.

No país que tem a quarta maior população carcerária do mundo, a tomada de medidas em caráter de urgência só reitera a falta de estratégias para aplicar mudanças concretas no sistema penitenciário. Algumas raras iniciativas de humanização partem de organizações não governamentais, mas sem incentivo deixam de existir rapidamente ou simplesmente não tomam grandes proporções. Em 2002, o presídio Urso Branco, em Porto Velho, foi o Pedrinhas da vez. Em uma sucessão de brigas entre facções rivais, somada à ação violenta da Polícia Militar, foram registrados 27 assassinatos. A chacina de Rondônia foi considerada a maior do país, só perdendo em proporções para o massacre do Carandiru, em São Paulo, dez anos antes.

Depois dos episódios de Urso Branco, o trabalho realizado, já há alguns anos, pelo dramaturgo mineiro Marcelo Felice ganhou importância e transformou-se em um projeto sem precedentes no país. Ele ministrava pequenas oficinas de teatro com o intuito de discutir questões relacionadas aos direitos humanos entre os detentos. Hoje, seu projeto é vinculado à Secretaria de Justiça de Rondônia e monitorado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), tamanha a importância que representa.

Chão e determinação

O projeto rondoniense Reabilitando pela Arte tem quase duas décadas. O primeiro espetáculo montado com atores apenados ficou 15 anos em cartaz e circulou por todo o país, atingido a marca de 100 mil espectadores. Nos moldes do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, Bizarrus revelava histórias que tinham vínculo direto com as trajetórias pessoais de cada ator. Todas em torno de um destino comum: o cárcere.

No novo espetáculo, O Topo do Mundo, a trama conta mais do que um relato verídico dos acontecimentos que desencadearam em crimes, mas traz processos psicológicos de dor, medo, vaidade e vingança contra si e contra os outros. “Quando usam a palavra ‘ressocialização’, eu fico muito atento. Porque ressocializar significa voltar à sociedade.

Mas aí eu pergunto: de que forma? De uma forma analítica e crítica? Sabendo que a sociedade e o sistema capitalista nos impulsionam todos os dias a sermos ilícitos? Temos exemplos de políticos que ocupam o topo da pirâmide social e tornam-se mitos impunes. Então, no teatro, nós questionamos esses indivíduos com perguntas, tais como ‘quem eu sou?’, ‘por que repito certos padrões?’, ‘quem são meus pais?’, ‘quem eu era quando criança?’”, conta o diretor.

Felice denomina o trabalho que faz como teatro terapêutico, porque o roteiro é resultado de um profundo processo de autoconhecimento. A técnica elaborada por ele e sua equipe envolve uma ampla busca espiritual: semanalmente, o elenco faz sessões de massagem e meditação, e pela técnica oriental do eneagrama são classificados os tipos de personalidade e as patologias correspondentes a cada ator. Nos ensaios, entoam cantos indígenas e dançam ao ritmo de tambores para aquecer o corpo e o espírito.

Em situações mais esporádicas experimentam outras técnicas terapêuticas, como banhos de argila, elaboração de mandalas, temascal (sauna indígena feita com ervas e pedras aquecidas em uma fogueira). Além disso, já participaram em rituais do Santo Daime, no qual se bebe o chá ayahuasca. Para Felice, há diferenças inquestionáveis entre um ator comum e um que vive em um presídio, por isso essa “miscelânea” de terapias é estrategicamente aplicada para respaldar os atores em cena. “Porque quando ele entra pelo portão da unidade prisional, depara com um universo completamente diferente do que ele trabalha aqui. Então é preciso muito chão, muita determinação.”

Patologia social

O cenário da peça, montado em um galpão emprestado pelo Sistema Social do Transporte – Serviço Nacional de Aprendizado do Transporte (Sest-Senat), foi feito de areia e de um robusto tronco de árvore com um tambor em cima. O desenho no instrumento percussivo faz alusão aos egos de cada personalidade estudados no eneagrama. E a areia faz analogia ao deserto existencial que temos de enfrentar para, quiçá, chegar ao topo do mundo.

A psicóloga Maria Hercília Rodrigues Junqueira, professora da Universidade Federal de Rondônia (Unir), acompanhou o projeto nos últimos anos e afirma que pessoas cometem crimes como um mecanismo de defesa que desenvolveram em meio às circunstâncias de uma sociedade desigual. Alguns presos são, por assim dizer, o reflexo de uma patologia social.

Assim como outros profissionais, ela preferiu não ler o processo criminal dos apenados antes de atendê-los porque não queria se apegar ao delito cometido e sim às pessoas. “A primeira vez que fiz o exercício da música indígena com eles, pedindo que pisassem forte no chão e dançassem, fiquei muito surpresa. Eles não pisavam. E eu dizia ‘força, força!’ Eles pisavam leve. Sabe o que acontece? Quando eles vão pra uma prisão tiram o chão deles, quando eles voltam pra casa também.”

Em 18 anos de trabalho, somente duas pessoas­ fugiram do grupo, aproveitando a oportunidade de estar em uma atividade fora do presídio. Os saldos de reabilitação por parte dos que passaram pelo projeto são muito positivos: pelo menos 65% deles não voltam para a criminalidade.

Rogério Araújo é um exemplo. O ex-detento atuou no espetáculo Bizarrus e hoje é o diretor geral da ONG Acuda (de Associação Cultural e de Desenvolvimento do Apenado e Egresso), que lida com presidiários a partir das mesmas técnicas terapêuticas. Ele conta que se interessou  pelo projeto, pois viu ali uma chance, justamente, de fugir dos 15 anos de pena que teria de cumprir por tráfico de drogas.

Mas aí fui me envolvendo. Fui conhecendo coisas que nunca tinha experimentado. Massoterapia, reiki, meditação, ioga, movimento de corpo, dança. E isso foi me transformando, foi mudando a concepção que eu tinha de teatro e da vida. Na verdade eu nem vi o tempo passar”, descreve.

Porto Velho tem oito presídios e, em quase duas décadas, cerca de 2 mil pessoas passaram por essa experiência terapêutica. De uma maneira geral, ex-detentos alcançados por ela tornam-se difusores da ideia entre seus familiares e amigos. E são certamente as pessoas mais capacitadas para tocar novos grupos terapêuticos como o de Felice, dando a conotação e o tratamento correto às pessoas que vivem em presídios. É uma intrincada combinação pedagógica e terapêutica, que associa o lúdico, o científico e a energia interior de cada ser humano a um objetivo.

Para tanto, requer antes de tudo vontade política. Em termos de resultados efetivos em unidades prisionais brasileiras, a iniciativa pode ser comparada ao que fez o médico Drauzio Varella no Carandiru ou ao projeto Cela Forte Mulher, do jornalista Antonio Prado, que estimulava detentas de São Paulo a redigir notícias e elaborá-las em edições impressas.

Essas práticas têm em comum o potencial de criar condições de dignidade dentro desses espaços esquecidos pelo poder. E também o fato de, embora acolhidas pelas autoridades dos sistemas penitenciários em que se situam, terem sido conduzidas de fora para dentro – ou seja, são exceções, num universo que tem como regra o déficit de vagas e a insuficiência de políticas públicas, como consequência da situação de abandono e como ápice, de quando em quando, as tragédias já conhecidas.