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Preciosas promessas

Algumas das mais adiantadas pesquisas com células-tronco, já em fase de testes com humanos, ainda não estão prontas para se tornar tratamento à disposição dos médicos. Mas as descobertas avançam

Regina de Grammont

Alexander Ulrich e sua equipe: regeneração do sistema nervoso primeiros resultados

A experiência era para avaliar como reagiriam as células da medula óssea de ratos normais transplantadas para outros expostos a raios X. Mas nas autópsias os pesquisadores Ernest McCulloch e James Edgar Till, da Universidade de Toronto e do Instituto do Câncer de Ontário, no Canadá, perceberam um inchaço no baço das cobaias, e maior entre as que receberam maior quantidade dessas células. A experiência, publicada em 1960, iniciou uma revolução. Os cientistas, até então preocupados com a aparência dessas estruturas com capacidade de autorrenovação, diferenciação e proliferação, passaram a investigar seus mecanismos de ação e em que poderiam ser aplicadas.

Nesses 50 anos, estudos realizados no mundo todo mostram que as células-tronco podem tratar diversas doenças em animais de laboratório, o que justifica o entusiasmo dos cientistas e os investimentos. Autoridades de saúde norte-americanas estimam haver mais de 3.000 pesquisas – experimentais com humanos – em todo o mundo. Só nos Estados Unidos são quase 2.000, na Europa chegam a 600 e no Brasil há 22 registros.

Para portadores de doenças degenerativas e incapacitantes, sem cura ou tratamento satisfatório – e para as pessoas de seu círculo afetivo –, a expectativa dos pesquisadores virou esperança. Por falta de informação, muita gente se oferece como cobaia em estudos ainda em etapas iniciais. Ou até paga por falsos tratamentos vendidos em várias partes do mundo. No ano passado, revistas científicas denunciaram o chamado turismo de células-tronco, com deslocamento de pacientes para outros países em busca de procedimentos clínicos de eficácia e segurança não comprovadas.

Há dois anos, o pesquisador canadense Timothy Caulfield encontrou na internet 32 sites que anunciavam terapias com células-tronco. Segundo o levantamento, apenas um deles identificou o procedimento como experimental e 26 o apresentaram como de rotina. Há ainda golpes como venda de medicamentos à base dessas células, como na Hungria, onde quatro pessoas foram presas no ano passado. E quem não se lembra dos três médicos de clínicas particulares brasileiras que, há cerca de quatro anos, venderam células-tronco em pó para pacientes gravemente enfermos?

A má-fé de aproveitadores é tão comum que, recentemente, a Sociedade Internacional para a Pesquisa sobre Células-Tronco lançou, nos Estados Unidos, um manual para o público leigo. A publicação explica as etapas da pesquisa científica e ressalta que, mesmo na fase clínica, com testes em humanos, a terapia é experimental e não tem segurança nem eficácia comprovadas.

Avanços no Brasil

Dificuldades com legislação, recursos insuficientes e até barreiras para importação de materiais de laboratório não desanimam os cientistas brasileiros. Em outubro de 2008, a geneticista Lygia da Veiga Pereira, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), anunciou a obtenção da primeira linhagem brasileira de células-tronco embrionárias humanas. Três meses depois, Stevens Rehen, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgou a criação, pela primeira vez no país, de células-tronco embrionárias sem a utilização de embriões – as chamadas células pluripotentes induzidas.

“Os feitos trazem a independência técnica fundamental para as pesquisas e para, no futuro, fornecer material de tratamento contra diversas doenças”, diz o neurocientista. Em outro trabalho inédito e inovador, Rehen dedica-se ao estudo de mecanismos de formação de neurônios a partir de células-tronco de pluripotência induzida e embrionárias – e das consequências que o transplante pode ter no cérebro de roedores com mal de Parkinson.

Como se vê, a pesquisa no país avança bem. Há testes, com humanos, de terapias para tratar doenças do coração, diabetes, acidente vascular cerebral (AVC) e silicose, doença pulmonar crônica e irreversível causada pela inalação de poeira de sílica, componente da areia usado na fabricação do vidro. O maior estudo em andamento em todo o mundo na área cardiológica é realizado por cientistas brasileiros. Com recursos do Ministério da Saúde, eles comandam o Estudo Multicêntrico Randomizado de Terapia Celular em Cardiopatias, que avalia a eficácia e a possibilidade de futura substituição dos tratamentos tradicionais por essas terapias no Sistema Único de Saúde.

Estão incluídos 1.200 pacientes brasileiros com cardiomiopatia dilatada, cardiopatia chagásica e isquêmica e infarto agudo do miocárdio. Uma parte recebe células-tronco retiradas da própria medula óssea e outra recebe placebo. Participam mais de 40 centros de pesquisa espalhados pelo país. Segundo o coordenador Antonio Carlos Campos de Carvalho, do Instituto Nacional de Cardiologia de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, ainda é cedo para falar em resultados. “O recrutamento de voluntários é demorado porque segue critérios rigorosos. Não basta querer fazer parte. É preciso obedecer às exigências”, diz. 

Principal causa de morte no Brasil, o AVC destrói células cerebrais e deixa sequelas em quem sobrevive a ele. A falta de drogas capazes de evitar a morte desses neurônios ou de gerar novos motivou os estudos coordenados pela pesquisadora Rosália Mendez Otero, do Instituto de Biofísica da UFRJ. Pioneiro, seu trabalho pretende utilizar células-tronco extraídas da medula óssea do próprio paciente para produzir novos neurônios. Por enquanto, seu grupo está testando a segurança dessas células. Em 2006, seis pacientes selecionados receberam células. Não houve piora, exames de sangue não mostraram alterações nos seis meses seguintes e todos tiveram melhora neurológica.

A mesma universidade está tratando experimentalmente pacientes com silicose. O objetivo da pesquisa liderada pelo professor Marcelo Morales é deter a evolução dessa doença ocupacional que atinge cerca de 6 milhões de pessoas em todo o país. Por meio de uma broncoscopia, os voluntários recebem uma injeção de células-tronco retiradas de sua medula óssea. Estudos com animais foram bem-sucedidos. Ainda não há resultados conclusivos. Se o procedimento se mostrar seguro nessa primeira etapa, deve ser ampliado.

Principais tipos de células-tronco
Embrionárias – Retiradas do interior do embrião no quarto ou quinto dia após a fecundação, são capazes de se transformar em qualquer tipo de célula adulta.  

Adultas – Encontradas principalmente na medula óssea e no cordão umbilical, têm capacidade de se dividir e gerar tanto uma nova célula idêntica como outra diferenciada. São menos versáteis que as embrionárias.

Pluripotentes – induzidas Em 2007, cientistas conseguiram fazer com que células da pele se revertessem para o estágio de célula-tronco. A descoberta abre caminho para inúmeras possibilidades em pesquisas.

Diabetes

No Hospital das Clínicas da USP de Ribeirão Preto, o imunologista Júlio Voltarelli avalia a reação dos voluntários com alta concentração de açúcar no sangue ao transplante de células-tronco da medula óssea. Sua hipótese, baseada em estudos anteriores que respaldam o tratamento experimental para normalizar a glicemia, é que as células-tronco migram preferencialmente para os tecidos inflamados do pâncreas, onde o hormônio insulina é liberado. Sem ele, o açúcar presente no sangue não consegue entrar nas células, trazendo várias consequências. Segundo seus estudos publicados nas principais revistas internacionais, essa migração estimularia mecanismos de regeneração locais. Agora, o cientista está avaliando a segurança, o efeito terapêutico e como essas células agem.

No Instituto de Química da USP, o professor Alexander Henning Ulrich coordena pesquisas que visam estudar os mecanismos de diferenciação neuronal e regenerar o sistema nervoso central e periférico. Em seu laboratório, ele e seus colaboradores Arthur Nery, Cleber Trujillo e Telma Schwindt mostraram a complexidade do trabalho de manipulação, cultura e diferenciação das células-tronco. Em outras palavras, como essas células são extraídas, isoladas, purificadas e expandidas até que se diferenciem em células neurais. “Já temos resultados preliminares em testes com cobaias que reproduzem problemas no nervo ciático”, explica Ulrich. Estudos com Parkinson e epilepsia, como a parte das pesquisas, ainda estão no início. 

No Instituto de Ciências Biomédicas da USP, o nefrologista Niels Olsen Saraiva Câmara e seus colaboradores querem desvendar como as células-tronco da medula óssea agem para atenuar o processo inflamatório e, assim, regenerar lesões renais crônicas e agudas em modelos animais. Segundo Olsen, os trabalhos voltados a doenças dos rins são todos experimentais e não existem testes em humanos no Brasil. Já nos Estados Unidos há um protocolo para tratamento, também experimental, com células-tronco em pacientes com alto risco de desenvolver lesão renal aguda logo após uma cirurgia cardíaca. “Não há notícia de que algum paciente já tenha recebido o tratamento”, diz.

Grandes expectativas

A degeneração progressiva e incurável da retina, que leva ao fechamento do campo visual, é objeto de estudos em todo o mundo. Na Universidade Federal de São Paulo, os professores Michel Eid Farah e Gustavo Castro avaliam a capacidade de sobrevivência, integração, migração e diferenciação de células-tronco humanas retiradas da medula óssea e transplantadas na retina de camundongos. Estudos preliminares mostraram boa integração e melhora, ainda que bastante limitada, da acuidade visual. Mas há muitos desafios pela frente. “Ainda não sabemos ao certo se as células imaturas implantadas são capazes de sobreviver, integrar-se ao tecido lesado, apresentar diferenciação, formar novas conexões e, dessa forma, melhorar de forma significativa a resposta visual”, explica Farah. “Outro problema é o risco de proliferação descontrolada das células implantadas, gerando tumores.”

Na Universidade Federal de Santa Catarina, a pesquisadora Andrea Gonçalves Trentin pretende avaliar o potencial das células-tronco retiradas da pele humana no desenvolvimento de novas coberturas cutâneas que auxiliem no tratamento de grandes queimados. “Para isso, preciso antes identificar as condições necessárias para a diferenciação, renovação e sobrevivência dessas células, o que está sendo feito em animais de laboratório.”

Sergio Paulo Bydlowski, da Faculdade de Medicina, e Irene Noronha, do Laboratório de Nefrologia Celular e Molecular, ambos da USP, lideram pesquisas com ratos com insuficiência renal crônica. Ele conta que os animais receberam células-tronco nos rins e os primeiros resultados já estão sendo obtidos. Outros experimentos em ratos com lesão medular começarão assim que for definido se serão usadas células já diferenciadas em neurônios. Em ambas as situações experimentais serão utilizadas células-tronco derivadas do líquido amniótico, inclusive humano.

As expectativas são grandes. Os resultados preliminares com insuficiência renal são muito promissores e, teoricamente, as experiências com animais lesados na medula também são muito boas. Segundo ressalta o cientista, os avanços nessas pesquisas consistem basicamente no conhecimento sobre a biologia dessas células, ou seja, como vivem e se comportam. “Os dados experimentais em termos de implantação desse tipo de célula ainda são relativamente escassos, se bem que avançam velozmente.” 

Como todos os cientistas que pesquisam células-tronco, Bydlowski tem muitas perguntas a serem respondidas até saber ao certo se elas têm chances de ser aplicadas com sucesso em determinados tratamentos médicos. No seu caso, precisa saber qual a melhor idade gestacional para a obtenção das células do líquido amniótico e se a obtenção seria possível nessa idade, quais doenças poderiam ser tratadas por elas, como utilizá-las, se seria possível construir um banco de células-tronco e como armazená-las. Sem contar a necessidade de desenvolvimento de um sistema que as entregue à parte exata do corpo e as estimule a se integrar às células naturais e funcionar como elas. Enfim, os muitos questionamentos que movem a pesquisa em terapia celular no Brasil e no mundo exigem ainda um grande número de estudos. 

Pesquisas em andamento
Em 2008, o Ministério da Saúde criou a Rede Nacional de Terapia Celular, formada por oito centros de pesquisas localizados em cinco estados e por 52 laboratórios selecionados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, do Ministério da Ciência e Tecnologia. A rede mantém um banco de estudos, espécie de panorama do que acontece pelos laboratórios do país. Alguns exemplos: 

AVC, traumatismo craniano e lesão medular 
Na Unifesp, Marimélia Porcionatto tenta decifrar por que as células-tronco de medula óssea, depois que se transformam em células cerebrais, morrem logo que chegam à lesão. Isso impede que os tratamentos experimentais surtam os efeitos desejados. Na Universidade Federal do Pará, Walace Gomes Leal investiga o papel de mecanismos inflamatórios na proteção e formação de novos neurônios a partir de transplantes de células-tronco da medula óssea em animais com AVC. 

Doença arterial periférica
Na Unicamp, Joyce Maria Annichino Bizzachi avalia, em cobaias, o uso de células-tronco derivadas de tecido gorduroso na formação de novos vasos sanguíneos nos membros afetados. Como testes em humanos não obtiveram sucesso, Mauro Martins Teixeira, da UFMG, estuda como aumentar a capacidade das células-tronco na criação de novos vasos em tecidos de membros afetados. 

Epilepsia
Beatriz Monteiro Longo, da Unifesp, avalia em cobaias o efeito de células-tronco nos processos cerebrais que levam à epilepsia. 

Fígado
Anna Renata Krepel Goldberg, da USP, busca a obtenção de células hepáticas por meio de células-tronco do cordão umbilical. Para isso, ela precisa antes saber que animal de laboratório poderá reproduzir a insuficiência hepática exatamente como em humanos. 

Joelho
Na Unicamp, está sendo estudada a diferenciação e implantação de células-tronco a partir de tecido gorduroso coletado em lipoaspiração. Para observar o padrão de regeneração, os cientistas implantarão o material na área de carga de joelhos de coelhos. 

Medula espinhal
Carlos Alexandre Netto, da UFRS, estuda a melhor maneira de administrar células a cobaias, bem como os métodos de avaliação dos efeitos. 

Ossos 
Na USP, Mari Cleide Sogayar coordena pesquisas de um novo método para que as células-tronco da pele e da polpa dentária possam ser usadas no reparo de perdas ou lesões ósseas. Na UFMG, equipe de Alfredo Goes estuda, em ratas com osteoporose, células-tronco dos tecidos de gordura do corpo humano como fonte alternativa para a regeneração ou formação do tecido ósseo. 

Surdez
Ricardo Ferreira Bento, da USP, desenvolve metodologia de investigação para padronizar procedimentos em pesquisas que possam desenvolver estratégias de uso de células-tronco na deficiência auditiva.