Economia

O BC na retranca

Com medo de uma alta no PIB acima do esperado em 2010, e a pretexto de conter pressões inflacionárias, o Copom faz a economia do país pisar no freio

JOSE CRUZ/abr

Henrique Meirelles joga para um lado, o governo, para o outro

Um pouco antes da convocação da seleção brasileira, no início de maio, e um pouco antes da escalação de estreia do time de Dunga neste 15 de junho na Copa da África do Sul, o Brasil conviveu com outros dois anúncios que rendem muito menos conversa de botequim, mas interferem muito mais no futuro do país. O movimento de alta nos juros básicos da economia, iniciado no final de abril e mantido agora em junho, provocou o descontentamento geral da nação – exceto dos banqueiros. E mostrou que o time de Henrique Meirelles no Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, coerente com seu conservadorismo, não quer um esquema tático de crescimento jogado para a frente. Nada de dribles mais rápidos e desconcertantes sobre os atrasos da economia e do desenvolvimento. Tudo para não tomar um contra-ataque da inflação, embora ela esteja muito bem marcada e bem fora de forma.

Mas, afinal, qual é o nível “apropriado” de crescimento? É fato que a inflação, principal argumento do BC, deve ser acompanhada com zelo. O ano começou com previsões de uma taxa de 4,5% e em maio o índice anual chegou a 5,5%. Está, portanto, entre o centro e o teto da meta de inflação estipulada pelo Copom para 2010 (que é conter o IPCA entre 2,5% e 6,5%). E com indicações de que já começa a ceder, pois os preços de alimentos desaceleram. Conservador, o Copom preferiu manter a taxa Selic perto dos 10% ao ano, já que as projeções para a variação do PIB deste ano passaram a oscilar entre 6,5% e 8,5%. Esse ritmo chinês seria o mais acelerado desde 1986, quando o PIB cresceu 7,5%.

O economista Luiz Gonzaga Belluzzo observa que a política do BC é de se antecipar a uma mudança de velocidade da inflação, mas vê sinais ambíguos. “O que está claro é que há uma expansão (da economia) muito rápida”, diz. Alia-se a isso a reação “pavloviana” do Copom a qualquer indício de inflação em alta, acima do centro da meta (4,5%). “A política de metas pode, se mal conduzida, ser danosa para a economia”, afirma o economista. (Ivan Pavlov foi um fisiólogo russo que estudou o papel do condicionamento no comportamento dos seres vivos. Segundo ele, as pessoas podem ser induzidas a uma ação não gerada por uma necessidade dela, mas por estímulos externos. A teoria ajudou a desenvolver a psicologia do comportamento, que ajuda tanto em terapias contra trauma como em anúncios de propaganda.)

Belluzzo destaca a rápida recuperação do Brasil após a crise de 2008 e a importância de manter uma taxa equilibrada de crescimento, entre 6% e 6,5%. “A velocidade da economia, sobretudo o consumo, pode levar a desequilíbrios importantes”, diz ele, relatando sua experiência na época do Plano Cruzado, em meados dos anos 1980. “O choque de demanda foi violento”, lembra. Mas uma alternativa mais viável para controlar o consumo estaria relacionada ao crédito, e não à taxa de juros. “A política monetária não está ajudando nada”, afirma Belluzzo, destacando que cada 0,75 ponto percentual a mais na taxa Selic corresponde a 2 a 3 pontos percentuais a menos na capacidade de investimento do Estado.

Sensibilidade

O professor da Unicamp Ricardo Carneiro observa que a política de juros tem um efeito real e outro de expectativa. “Você também administra expectativas, não só demanda”, afirma, chamando a atenção para a provável retração de investimentos provocada pela política monetária. Carneiro lembra que houve uma contração grande no ano passado, decorrente da crise. “O que está acontecendo é a recuperação de um nível pré-crise. Tanto a produção como os investimentos se contraíram muito, menos a demanda. É isso que de certa forma está explicando o crescimento da inflação”, analisa. Para o professor, o BC mostra despreocupação com o crescimento: “O investimento no Brasil tem uma sensibilidade grande a aumento da taxa de juros”.

Segundo ele, a própria autoridade monetária causou expectativa inflacionária. “Quem começou a falar em inflação foi o BC, desde o último trimestre do ano passado. É uma profecia autorrealizável”, ironiza. Recentemente o diretor da Federação das Indústrias de São Paulo Paulo Francini lembrou que os empresários pensam duas vezes antes de tocar seus projetos caso sintam que a intenção do BC é frear a economia. E a indústria só agora vem atingindo os níveis anteriores à crise.

gerardo lazzaritaxa
A taxa de juros continua perto dos 10%, apesar da desaceleração do preço dos alimentos, que compõem o cálculo da inflação

Legitimidade

Para Salvador Werneck Viana, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), não existe surto inflacionário, mas pressões localizadas, sobretudo em setores que tiveram incentivo do governo. “O Copom, aparentemente, indica que está mirando o centro da meta. E o Comitê e o BC não têm legitimidade para perseguir o centro, mas uma meta”, critica, afirmando que essa atribuição é do Conselho Monetário Nacional (CMN).

Werneck Viana também aponta a necessidade de garantir um ambiente favorável à ampliação do investimento. “O empresário só tem retorno se a economia estiver aquecida”, afirma. “A atual política macroeconômica incorre em custo excessivo do ponto de vista do emprego, do ponto de vista cambial, monetário. Vale a pena buscar alternativas para que a taxa de juros não seja o único instrumento de controle da inflação. Temos de combater os gargalos e aumentar nossa estrutura produtiva.”

O economista do Ipea lembra que isso já aconteceu no início de 2008, quando os juros aumentaram diante de uma aparente ameaça de inflação. Na ocasião, o instituto divulgou uma dura nota técnica, com ataques ao BC. “A verdade é que estávamos certos. O BC não ia ter sangue-frio… Era uma questão de observar um pouco mais, esperar. Havia interesses financeiros, que já estavam convivendo com margens menores. Mais uma vez, o BC optou por não ter sangue-frio e esperar com mais calma.”

Além disso, Werneck Viana critica o que chama de falta de transparência do Copom, cujos votos não são divulgados, diferentemente do que acontece com o Federal Reserve, o BC dos Estados Unidos. “Por que eles têm direito a esse concílio?”, questiona o economista, para quem os objetivos da autoridade monetária não podem se limitar a controle da inflação, mas precisam incluir questões como desenvolvimento, emprego e renda.

O economista Sérgio Mendonça, do Dieese, não vê necessidade de elevar os juros por causa dos preços. “Não parece haver inflação de demanda neste momento. O que surpreendeu foram os preços dos alimentos, com um problema de oferta, e não de demanda, causado pelo clima”, afirma. Para ele, a tendência é de desaquecimento da inflação, a não ser que aconteçam novos choques de alimentos.

“Se a ideia do BC é olhar para a frente, ele vai perder o argumento”, observa Mendonça, lembrando que a rede de instituições e pessoas pesquisadas a respeito da inflação futura concentra-se, ao que tudo indica, nas grandes instituições financeiras: “Ou seja, você pergunta ao lobo como cuidar do cordeiro”. O economista do Dieese ainda adverte que o próximo “vilão” do debate poderá ser o salário. “Se a economia aquecer mais e a inflação subir mais um pouco…”

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, chegou a afirmar que a economia brasileira pode crescer de 5,5% a 6% sem desequilíbrios nem gargalos. Segundo ele, não fossem os preços de alimentos os índices de inflação já estariam menores. O presidente do BC, por sua vez, disse que toda ajuda para conter a inflação é bem-vinda. E o ministro do Trabalho e Emprego, Carlos Lupi, na onda do seguidos recordes do emprego formal, aproveitou para dizer que a inflação exige cuidados, mas não pode ser vista como “o capeta da nossa economia”. O crédito pode ser uma maneira de evitar um superaquecimento do motor econômico, sem que haja necessidade de um “cavalo de pau” no crescimento em curso.

Outra lição de casa é possível
Livro analisa distanciamento dos bancos privados dos investimentos produtivos e busca propostas para um sistema bancário socialmente mais útil

capalivro“Desde o século 19, trava-se uma luta intestina, dentro do capitalismo, entre o capital financeiro e o industrial.” Assim o jornalista Luis Nassif abre o prefácio do livro Sistema Financeiro e Desenvolvimento no Brasil – do Plano Real à Crise Financeira. A obra, fruto de uma parceria entre o Sindicato dos Bancários de São Paulo e o Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi lançada no último dia 10 de maio durante debate sobre o papel que o sistema financeiro tem desempenhado no país nas últimas décadas e que papel poderia ter. O objetivo do trabalho é subsidiar propostas para uma nova regulamentação que imponha ao sistema bancário compromissos com investimentos produtivos, geração de emprego, renda e desenvolvimento – responsabilidade hoje concentrada nos bancos públicos e ao sabor do governo de ocasião.

Para Luis Nassif, que mediou o debate, a recuperação do papel proativo do Estado e o aproveitamento virtuoso do mercado de capitais exigem a “exumação do cadáver do neoliberalismo estéril das últimas décadas”. Ricardo Carneiro, da Unicamp, é co-organizador do livro junto com Luiz Cláudio Marcolino, que acaba de deixar a presidência do sindicato, assumida por Juvandia Moreira. Os três assinam textos no trabalho. Completam a obra análises feitas por André Martins Biancarelli, Giuliano Contento de Oliveira, Daniela Magalhães Prates, Maria Cristina Penido de Freitas e Maryse Farhi, ligados ao Cecon, pela economista Ana Carolina Tossetti Davanço e pela cientista social Ana Tércia Sanches, do Sindicato dos Bancários.

Ricardo Carneiro defendeu o fim da cultura de curto prazo dos bancos privados nacionais e a modernização do sistema, citando a crise financeira internacional: “Vivemos nos últimos 30 anos sob a hegemonia de um sistema capitalista dominado pelas finanças. Estamos vendo agora o resultado dessa hegemonia”, afirmou. “Jamais na história do capitalismo o sistema financeiro custou tanto às nações.” Em seu prefácio Nassif aponta também: “O livro faz talvez o melhor apanhado até agora sobre todos os passos dados pelo Brasil passando de uma economia fechada para uma economia financeira. Será uma obra de referência para futuros estudos desse processo”.

Nas últimas semanas, o trabalho foi apresentado em faculdades de várias cidades paulistas com a finalidade de estimular os estudantes de Economia, e as próprias escolas, a incluir o tema na agenda. E quem sabe encerrar a era do bordão economês “fazer a lição de casa” com o sentido de sacrifício de investimentos públicos em saúde, educação e outras despesas essenciais em nome da satisfação e da confiança do ex-todo-poderoso mercado.
(Paulo Donizetti de Souza)

Lançamento
Sistema Financeiro e Desenvolvimento no Brasil – do Plano Real à Crise Financeira
Organizadores: Ricardo Carneiro e Luiz Cláudio Marcolino
Editora Publisher Brasil e Editora Atitude
260 páginas. Em breve nas livrarias