trabalho

Enfim, globais

Sindicatos buscam articulação internacional por condições de trabalho mais civilizadas

Roberto Parizotti

Moacir trabalha na Basf de São Bernardo, onde a jornada média é de 42 horas semanais

Uwe Woyciechowski, de 47 anos, engenheiro mecânico, gosta de jogar tênis de mesa, passear de bicicleta e descansar no jardim de sua casa. Marcelo José da Silva, o Sagui, de 35 anos, operador de máquinas especiais na mesma empresa, curte ficar com a família (casado, tem uma filha de 10 anos), ler, ver filmes, jogar futebol. Em comum, eles têm o empregador, a Mercedes-Benz. Uwe trabalha na Alemanha e Marcelo, no Brasil. Cada qual tem sua jornada, 35 horas semanais lá, 40 aqui. Mas são unidos por acordos coletivos que estabelecem condições mínimas de trabalho e procuram minimizar os contrastes entre os diferentes países onde a fábrica está instalada.

Se a organização da classe trabalhadora não se internacionalizou como esperavam os pensadores do final do século 19, pelo menos nos últimos 20 anos as negociações trabalhistas tentam tirar esse atraso. A troca de informações entre sindicatos de diferentes países tornou-se prática comum à medida que as empresas também passaram a diversificar e ampliar suas operações pelo mundo. Mas o caminho é longo.

Os acordos, globais, não substituem os contratos negociados em cada local de trabalho, ou região, mas estabelecem princípios básicos que devem ser obedecidos pelas empresas, independentemente de onde estiverem instaladas. “Os acordos globais podem ser um bom exemplo para que as empresas não globalizem só seus ganhos como também os direitos dos trabalhadores, resultando ainda em políticas de responsabilidade social”, diz Juan Antonio Fernández Sierra, dirigente da UGT da Espanha, que negocia com a Telefónica. 

O diretor regional para as Américas da UNI Global, Marcio Monzane, vê uma lógica comum na evolução das negociações. “Nos anos 70, tínhamos um movimento local, com sindicatos locais. Depois se iniciou um processo de articulação do movimento sindical também em nível nacional, com a criação das centrais sindicais, com a negociação coletiva nacional, como é o caso dos bancários. O processo internacional segue essa mesma lógica”, analisa. Marcio, bancário do antigo Real, adquirido pelo holandês ABN Amro, por sua vez comprado pelo espanhol Santander, foi diretor do Sindicato dos Bancários de São Paulo e há cinco anos integra a direção da UNI – United Network International, rede que reúne 900 entidades dos setores de serviços, comércio e financeiro do mundo todo, abrangendo um universo de 20 milhões de trabalhadores.

A UNI já firmou acordos marco com multinacionais como a seguradora Allianz, a rede de supermercados Carrefour e as empresas de telecomunicações Portugal Telecom e Telefónica. Em março, sindicalistas de várias regiões do mundo reuniram-se em São Paulo com o objetivo de discutir a elaboração desses acordos globais com as direções mundiais dos bancos HSBC e Santander. A UNI já tem na internet um blog para estimular o intercâmbio de informações da campanha pelo acordo marco global – www.bankonrights.org. Pelo site, bancários dos dois bancos nos quatro cantos do planeta podem também aderir aos abaixo-assinados cobrando negociação dos respectivos acordos.

Para a diretora do Sindicato dos Bancários de São Paulo Rita Berlofa, coordenadora da Rede dos Trabalhadores do Santander na América pela UNI Finanças, esse formato de acordo não é importante apenas para os trabalhadores, mas também para as empresas, pois agrega valor de responsabilidade social a suas imagens. “Bancos globalizados precisam de acordo global”, opina.

Responsabilidade social

Durante o evento em São Paulo, o presidente da UNI Global, Oliver Röethig, observou que HSBC e Santander empregam 466 mil pessoas no mundo. “Precisam provar que são sérios com relação a seus compromissos com a responsabilidade social assinando esses acordos”, disse. Röethig lembrou que há cerca de quatro anos o britânico HSBC mudou seu setor de call center da Inglaterra para Malásia e Índia. “Na Inglaterra, os bancários trabalhavam quatro horas por dia e recebiam entre € 2 mil e € 2,5 mil por mês. Na Ásia, as jornadas vão de oito a 12 horas e os salários passaram em média para US$ 400 (€ 300)”, compara.

“Agora, além da articulação política internacional, também se desenvolve uma ação sindical concreta, representando trabalhadores em negociações coletivas com empresas multinacionais, organizando sindicatos em muitas regiões em que ainda não há uma forte presença sindical e afiliando mais trabalhadores”, explica Marcio, ressaltando que a sindicalização dos trabalhadores a partir de suas bases é o ponto de partida para a organização em termos internacionais. Nos Estados Unidos, por exemplo, os bancários não têm direito a constituir sindicatos, à licença-maternidade, à licença-médica. Em média, um não sindicalizado recebe US$ 8 pela hora de trabalho, enquanto o sindicalizado da área de serviço ganha US$ 14 para o mesmo período.

Além de reprimir a ação sindical, a conduta do empresariado norte-americano  tem ainda o demérito de exportar para o mundo a política de metas, hoje grande responsável pela deterioração das condições de trabalho e de saúde – e também alvo de resistência dos movimentos globais organizados.

A bancária norte-americana T., que pediu para não ser identificada, acredita que a presença de um sindicato ajudaria a evitar situações como a dela, que teve reduzida a carga horária pela metade – com a consequente queda na renda – e perdeu direitos como o plano de previdência privada. “Tive de conseguir outro trabalho. Também sou estudante, e para pagar as despesas sou obrigada a ter um emprego em período integral”, conta.

“Qualquer acordo só tem validade se for garantido com ação sindical”, reforça Valter Sanches, secretário de Relações Internacionais da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM-CUT). “Do ponto de vista da negociação, esse é um ponto fundamental.” A categoria já tem, há alguns anos, a experiência dos comitês mundiais da Mercedes-Benz e da Volkswagen. Sanches integrou o comitê da Mercedes (grupo Daimler), passou pelo grupo de trabalho formado também por dirigentes sindicais da Alemanha e dos Estados Unidos e hoje é representante dos trabalhadores no conselho de administração da empresa, que tem 252 mil funcionários em todo o mundo, 13.500 no Brasil. “A legislação alemã permite que os trabalhadores sejam eleitos”, lembra Sanches. “Lá (no conselho), a gente participa das decisões estratégicas. Pode conhecer os planos da empresa com antecedência e interferir neles.”

O presidente do Sintetel, sindicato de trabalhadores no setor de telecomunicações em São Paulo, e da Fenatel (federação nacional da categoria), Almir Munhoz, avalia que houve avanços nas negociações com a Telefônica, que chegou ao Brasil com o processo de privatização da telefonia, em 1998. Munhoz admite que a empresa ainda pratica no país uma terceirização “selvagem”, mas considera que, em nível mundial, a organização dos trabalhadores do grupo tem se intensificado na última década, com o objetivo de forçar a empresa a respeitar a legislação dos diversos países para onde passou a expandir as atividades.

A chamada Aliança UNI-Telefônica faz reuniões anuais para discutir os problemas da companhia. Na mais recente, em janeiro, na Colômbia, os sindicalistas denunciaram o desrespeito, em alguns países, ao princípio da liberdade sindical, a “práticas antissindicais” por parte da Atento, maior empresa mundial de call center, da prática da quarteirização. “Isso faz com que a mão de obra tenha uma queda de qualidade em atividades permanentes da empresa”, diz a UNI. 

Para Marcio Monzane, essa experiência acumulada com outras companhias pode ajudar nas negociações com o Santander.  “Não acredito que em um contexto em que muitas empresas espanholas estão utilizando o instrumento do acordo marco, como parte do gerenciamento mundial de seus negócios, o grupo Santander queira simplesmente manter uma posição isolada. Seria um erro estratégico muito grande.” 

Roberto ParizottiMarcelo
Marcelo, da Mercedes do ABC: condições mínimas acordadas com a matriz alemã

Resistência doméstica

Na Basf, líder mundial do setor químico, com 105 mil trabalhadores (5.000 no Brasil), a experiência completou dez anos em 2009, lembra o coordenador-geral da Confederação Nacional do Ramo Químico (CNQ-CUT), Sérgio Novais, vice-presidente para a América Latina da Icem, a federação mundial do setor. “No início, a empresa não aceitava sequer discutir em nível estadual”, afirma Novais. Em 1999, foi criada a rede de trabalhadores da Basf na América do Sul, que faz reuniões regulares a cada oito meses e renova a direção de dois em dois anos, quando ocorre um encontro de todos os sindicatos com a direção mundial da empresa alemã.

No começo, houve resistência mesmo entre os sindicalistas, segundo Novais. Caso de um dirigente argentino, que a princípio era contrário à criação de uma rede mundial, por avaliar que se tratava de algo paralelo ao sindicato. “Fomos apanhando e aprendendo. Hoje, já existe um trabalho inverso”, afirma ele, em referência ao desenvolvimento de companhias brasileiras pelo mundo. “Temos muitas multinacionais brasileiras, e há companheiros querendo ajuda em relação à Petrobras, à Vale, à Gerdau”, exemplifica.
Mas comparar realidades ainda é difícil. “Na Alemanha, o Estado dá ao trabalhador educação, assistência médica, o transporte é subsidiado. Aqui, você tem de negociar com a empresa. No geral, a qualidade de vida não é muito diferente. Mas a demissão lá é muito mais criteriosa. Não há a rotatividade daqui, não pode ser coisa pessoal de chefe”, explica Novais.

Sanches, da Mercedes, avalia que as diferenças têm sido reduzidas em função da situação econômica favorável e da ofensiva sindical brasileira simultâneas a uma defensiva dos sindicatos alemães ante a crise na Europa. O engenheiro Uwe recebe pouco mais de € 2.600 líquidos (aproximadamente R$ 6.100), em uma jornada de 35 horas semanais. Sua colega Martha Kruse, de 61 anos e há 21 na unidade alemã da Mercedes, ganha € 2.264 líquidos (por volta de R$ 5.280), acima da média da função – trabalha no setor de acabamentos.  Na Mercedes de São Bernardo, o operador de máquinas Marcelo está dentro da faixa de sua função (entre R$ 3 mil e R$ 3.500 brutos).

Na Basf, o pior da crise parece ter passado. Mas Fritz Hofmann, da comissão de fábrica em Ludwigshafen (sudoeste da Alemanha), lembra que os empresários têm dito que não há espaço para aumentos salariais, e o Estado sinaliza com elevação dos impostos. “Isso significa que, passada a primeira fase da crise, agora vem o debate: quem paga a conta?”, observa o alemão, chamando a atenção para a necessidade de renovação de um acordo local de proteção contra demissões. “Tenho boas expectativas em relação à renovação desse acordo, mas receio que a Basf vá exigir um alto preço por isso.” Na Basf de São Bernardo, a meta é estender a redução da jornada para toda a unidade. E as chances de isso acontecer são grandes, de acordo com o coordenador da comissão de fábrica, Moacir Pereira da Silva. “A produção está alta, o pessoal está trabalhando de domingo a domingo”, conta.

Com 45 anos, Ralf Waldherr trabalha há 18 anos na Basf, na área de produção química na unidade de Ludwigshafen. Faz em média 37,5 horas por semana, “como está no acordo coletivo”. E tem seis semanas de férias por ano. Ele se alterna entre os turnos diurno e noturno, e isso faz diferença no pagamento. “Um terço do meu salário vem do trabalho que faço regularmente à noite e nos domingos e feriados trabalhados. Ralf ganha € 2.500 (R$ 5.800 líquidos). “É a média da minha profissão”, afirma. Para ele, um dos benefícios mais importantes é o do fundo de pensão.

Em São Bernardo, a maioria dos trabalhadores da Basf cumpre jornada de 42 horas. Uma pequena parte já trabalha num regime que atinge 35 horas. Segundo Moacir, a briga é pela jornada menor para todos os funcionários. A unidade tem, basicamente, três faixas salariais: operador 1 (por volta de R$ 2.500), operador 2 (R$ 2.000) e operador 3 (R$ 1.600), incluindo os 30% de periculosidade.

Jailton GarciaSindicalistas
Sindicalistas de vários países reuniram-se no Brasil para discutir pontos comuns a serem negociados com as direções dos bancos HSBC e Santander

Jornadas conforme a estação

Há cinco anos e meio na Telefônica, em São Paulo, a assistente Tatyanne Smahan Obeid tem praticamente toda a vida profissional ligada à empresa, para quem antes prestava serviços como terceirizada. Entre os benefícios que recebe, a jovem de 25 anos destaca a previdência privada (a companhia paga metade do valor) e auxílio para o curso superior, além de itens como vale-refeição, convênio médico, cesta básica e auxílio-creche. “Em relação a benefícios, está bem acima das demais empresas do setor”, avalia Tatyanne, que recebe aproximadamente R$ 1.300 mensais.

O acordo do Sintetel com a Telefônica foi renovado em outubro do ano passado e tem validade de um ano. Na Espanha, o atual convênio negociado pelas principais centrais (CCOO, UGT e STC) começou a vigorar em janeiro de 2008 com validade de três anos, assegurando manutenção do poder aquisitivo e adicional de produtividade vinculado ao lucro. Prevê ainda negociação com os trabalhadores em casos de reestruturação de atividades “que suponham consequências sobre o emprego” e chega a detalhes como jornadas distintas entre inverno (38 horas) e verão (35 horas).

Os acordos de longa duração já são também uma realidade para o Santander da Espanha, bem como o compromisso de negociação com as entidades sindicais sobre qualquer alteração de conjuntura que venha a representar riscos ao nível de emprego. Nesse caso, a duração é de quatro anos. Prevê salários, reajustes  e jornadas anuais (com cláusula de revisão, conforme a inflação).

Aqui e lá, os trabalhadores estão de olho nessas negociações. Afinal, os resultados são contabilizados globalmente. Em 2009, o Santander anunciou lucro mundial de € 8,94 bilhões (alta de 0,7%). E a própria direção reconheceu o papel do Brasil, onde o lucro cresceu 41% e atingiu R$ 5,5 bilhões, como fundamental nesse resultado global. Em tempos de crise na Europa, a América Latina tornou-se válvula de escape da instituição. “A diversificação geográfica e a sinergia de integração dos negócios adquiridos nos dois últimos anos permitem ao Banco Santander enfrentar 2010 com mais otimismo”, afirmou, ao divulgar seu balanço. Podia incluir nessa perspectiva a construção do acordo global. 

Colaborou Flávio Aguiar, de Berlim