Ainda existe o risco da opção nuclear

A tragédia começa muito antes de Fukushima, e compromete gerações futuras

Quando comecei a dirigir nas estradas brasileiras, alguém me explicou uma “vantajosa teoria” para ultrapassagens perigosas em lombadas durante a noite. O expediente consistia em apagar as luzes do carro, o que “facilitaria” a percepção das luzes de outro que viesse em direção contrária – as chances de um carro vir em direção contrária com as luzes apagadas eram quase nulas. O que escapava à visão dessa “brilhante teoria” (ou apagada?) era o fato de que, se viesse realmente um carro com as luzes apagadas em sentido contrário, as chances de não ocorrer uma grande catástrofe eram nulas. A metáfora pode ser pobre. Mas encaixa na tragédia das usinas nucleares. A do Japão não se limita ao acidente. Como toda tragédia, começa muito antes, em gerações anteriores. E compromete o futuro das próximas.

Se as usinas em construção ou planejadas forem de fato concluídas, sua produção cobrirá mais de 30% da energia elétrica consumida no mundo. Só na França, cerca de 80% vem dessa fonte. Apenas Alemanha, Itália e Reino Unido congelaram a construção de novas unidades – embora o atual governo alemão tenha alongado a vida das unidades existentes por até 14 anos.

No papel e no discurso, as usinas deveriam resistir a tudo: de terremotos a ataques aéreos­; de falhas humanas a deficiências técnicas. Na prática, a música é outra, e a Marcha Triunfal já se transformou em Marcha Fúnebre algumas vezes. Chernobyl, na Ucrânia (então parte da União Soviética), ainda na década de 1980, resultou em mais de 25 mil mortes, além de inutilizar uma enorme área terrestre para a vida humana por gerações. Provocada por uma série de deficiên­cias técnicas aliadas a falhas humanas, a catástrofe­ contou com gestos extraordinários de heroísmo por parte de técnicos, bombeiros e outros que, com o sacrifício da própria vida, impediram desastre ainda maior.

Mas a lição não se enraizou. A proliferação de usinas nucleares no mundo inteiro prosseguiu, como se nada houvesse acontecido. Agora, o desastre de Fukushima, no Japão, pode ter o mesmo destino, o desse “relativo esquecimento” que o colocará num limbo aureolado pelo descaso. Explicar essa desrazão apenas pelo lobby de empresas e agências de governo encarregadas da construção e administração das usinas – que existe, e é poderosíssimo com a mídia e fora dela – é insuficiente.

As usinas nucleares fazem parte do sonho e do pesadelo do estilo contemporâneo de consumo. E, como nos sonhos e pesadelos, nossa tendência é lembrar os primeiros e esquecer os segundos. Assim como no caso do aquecimento global, a questão nuclear demonstra que não basta mudar os padrões de produção da economia. É necessário intervir nos padrões de consumo, em escala mundial, com educação e debate democrático. Não adianta querer impedir que o Brasil construa novas usinas nucleares se o cidadão da França continuar a consumir perto de 80% de sua energia elétrica a partir dessa fonte. Nem reprovar que os chineses comprem automóveis enquanto os norte-americanos continuam­ a ter mais de 70 veículos para cada 100 habitantes.

Já li manchete de artigo dizendo que “a energia nuclear vale o risco”, é “limpa”, tem taxa de acidentes baixa etc. Mas não se discutem a dimensão dos desastres nem a obliteração da memória. Este talvez seja o maior risco e a maior tragédia, hoje, dessa forma de energia: a introdução de sua presença no mundo dos esquecimentos programáticos. No caso de Chernobyl, houve uma tendência a ligar o desastre às sombras da “ineficiência” e do “autoritarismo” do “regime comunista”. A que atribuir agora a catástrofe japonesa? À “eficiên­cia” do regime capitalista? Talvez.

É necessário ampliar, aprofundar, insistir nessa discussão. Senão, continuaremos na “alegre” disposição de fazer ultrapassagens perigosas em lombadas noturnas. Com as luzes apagadas.