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PEC 241 pode ser a centésima mudança na Constituição em menos de 30 anos

Alto conteúdo de políticas públicas e desvios do 'espírito original' do constituinte são apontadas como razões para o número incomum de intervenções no texto promulgado em 1988

Memória EBC

Promulgação da Constituição, 1988: quem imaginaria a quantidade de alterações propostas a uma das maiores conquistas da sociedade brasileira

São Paulo – A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, prevista para ser votada hoje (25) em segundo turno na Câmara dos Deputados, pode ser a centésima alteração da Constituição Federal desde 1988, quando a Carta foi promulgada. Até o dia de hoje, Câmara e Senado já aprovaram 93 emendas constitucionais pelo rito ordinário de emendamento, que determina o aval de três quintos de deputados e senadores, em duas votações. Além dessas, foram outras seis emendas do processo revisional de 1994, totalizando 99 emendas constitucionais.

Autor da tese de doutorado Os mecanismos da governabilidade: sistema de governo e democracia no Brasil, o cientista político Cláudio Gonçalves Couto avalia que tantas alterações devem-se ao fato de a Constituição brasileira, entre seus muitos artigos, tratar bastante de políticas públicas, ao contrário de cartas constitucionais de outros países, que se limitam às questões mais amplas de cidadania, direitos e liberdades civis.

Entendo que esse processo decorre do modelo de constituição que adotamos, que contém muitas políticas públicas e muitos detalhes e questões particulares. Isso faz com que várias dessas questões rapidamente caduquem e outras, inevitavelmente, vão colidir com a agenda política de um ou outro governo, conforme sua orientação mais à direita ou à esquerda. E até questões que vão além dessa polarização, já que diferentes governos têm diferentes agendas, afirma Cláudio Couto.

Embora avalie não ver o constante processo de emendamento como um problema, ele reconhece que100 emendas em menos de 30 anosé uma marca bastante simbólica. Parece-me que temos, com isso, não um desvio da democracia, uma patologia, doença ou coisa do tipo. O que temos é uma consequência esperada de uma constituição muito detalhada e que trata de políticas públicas. E políticas públicas existem realmente para serem mudadas de acordo com a conjuntura, afirma.

Couto vai além e avalia essa flexibilidade de emendamento até como desejável, para que não se fique amarrado a uma situação que não faz mais sentido no contexto.

Porém, sem se referir especificamente ao caso do governo de Michel Temer, alçado ao poder por vias tortas, o cientista político pondera que essa possibilidade de mudanças constitucionais faz sentido quando o governante que propõe a alteração é quem teve nas urnas a maioria de votos. Se esse governante não puder aprovar a política pública que está na sua agenda, teremos então a Constituição obstaculizando que a vontade da maioria eleitoral se concretize, disse.

Oposto

O ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Cezar Britto vê a situação com outros olhos. Para ele, a Constituição Federal, conhecida como a Constituição Cidadã, foi justamente aprovada com forte espírito público por ser o retrato da sua época, um momento de ruptura com a ditadura civil-militar, em que se proibia até o livre pensamento e as reuniões públicas. “O sistema foi pensado para dar efetividade e evitar que o governante do futuro se desviasse do estabelecido. Mudaram-se as questões elementares”, afirma.

Cezar Britto acredita que a inclusão de políticas públicas no texto constitucional teve a intenção de garantir direitos, para que não fossem futuramente alterados ou suprimidos. Esse era o sentimento da época, assim como o de que viveríamos no Estado de direito, com os direitos constitucionais garantidos.

Para o ex-presidente da OAB, embora o texto constitucional tenha tido o cuidado de proteger e dar mais garantias ao Judiciário, inclusive para evitar que se voltasse a um legislador ditatorial, a própria Justiça hoje contribui para interpretações contrárias às pretendidas pelo constituinte.

Não temos a cultura, o apego à Constituição. Espero que, no futuro, nossa consciência constitucional seja protegida. O espírito cidadão da Constituição foi se perdendo com o tempo, com a própria contribuição do Supremo Tribunal Federal, afirma, citando como exemplo a presunção da inocência, prevista na Constituição e atualmente em xeque no Brasil.

Temos dois adversários. As modificações via PEC e o Judiciário, que sai da função de ser a última opinião para ser a primeira, com participação negativa, inclusive dialogando com o público o que vai ou não fazer, aponta Cezar Britto. Ele define o atual momento do Brasil como o tempo das máscaras caídas.

Ao cair, se revelam como são, sem pudor, misógino, esse é o momento em que as medidas são apresentadas sem disfarce, disse. Como exemplo, lembrou a recente decisão do Supremo Tribunal Federal de proibir o financiamento empresarial de campanhas políticas, medida que logo em seguida levou os parlamentares a cogitarem uma PEC para retomar a doação privada, sem nenhum constrangimento diante das revelações de relações espúrias entre congressistas e empresários.

Para todos os fins

A PEC 241, que pretende estabelecer o teto dos gastos públicos, se aprovada, se insere entre dezenas de outras emendas constitucionais com os mais variados objetivos.

A primeira PEC aprovada, em março de 1992, por exemplo, tratou da alteração do cálculo da remuneração dos deputados estaduais e vereadores. Ali se estabeleceu a fórmula do salário dos deputados estaduais serem 75% dos vencimentos dos deputados federais, e dos vereadores, 75% do salário dos deputados estaduais.

A Emenda Constitucional 8, de 1995, é a famosa alteração que permitiu ao governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) privatizar o sistema Telebras e as telecomunicações no Brasil. Não menos conhecida é a Emenda Constitucional 12, a que criou a CPMF, ou a Emenda Constitucional 16, aprovada sob medida para permitir a reeleição de FHC – cuja aprovação se deu com fortes indícios de compra de votos de parlamentares.

Em tempos mais recentes, o Congresso Nacional aprovou, em maio de 2015, a Emenda Constitucional 88, que ampliou de 70 para 75 anos a idade para aposentadoria compulsória dos magistrados dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União (TCU). Apelidada de PEC da Bengala, a alteração do texto constitucional foi feita com o claro objetivo de impedir que a então presidenta Dilma Rousseff nomeasse mais cinco ministros do STF até o final do seu segundo mandato, posteriormente interrompido pela metade, devido ao impeachment.

Há também o imenso universo de propostas de emenda à Constituição que não são aprovadas. Apenas em 2016, já são 241. Em 1989, primeiro ano em vigor da nova Constituição, foram apresentadas 37 PECs.

Algumas, entretanto, se destacam por seu teor, como a PEC 01, apresentada no dia 6 de outubro de 1988, dia seguinte da promulgação da Constituição Federal. De autoria do deputado Amaral Neto (PDS-RJ), a proposta previa a instituição da pena de morte no Brasil. Foi arquivada tempos depois.